Textos


O Escândalo

O Escândalo
R. Santana

I

Era uma casa comercial grande para os padrões da época. Algumas pessoas quando queriam comprar algum produto, indicavam o armazém do Juca como a principal referência comercial do lugarejo de São Caetano. No armazém do Juca, o trabalhador rural comprava o feijão, a carne-do-sol, o café, o fumo, a cachaça, o fósforo, o querosene, o arroz, o facão, a foice, a estrovenga; sua mulher, comprava o espelho de pataca, o pano de chita, o batom, o perfume barato, o analgésico; seu moleque crescido, comprava a bola de gude, o badoque, a peixeira lambedeira e os mais afoitos, a última geração de espingarda de matar paca e apetrechos de pesca. O armazém do Juca era um hipermercado dos tempos modernos.
Juca era um bom homem. Não seria exagero dizer que Juca era um homem santo. Não bebia, não jogava, não fumava, sua única distração era participar dos eventos da igreja católica ou assistir às missas de finais de semana com o irmão, a mulher e os filhos menores. Afora isso, vivia enfurnado em seu armazém na labuta diária. O seu maior investimento tinha sido a aura de honradez construída ao longo dos anos de trabalho junto aos seus fregueses e aos seus fornecedores. Embora existissem outros estabelecimentos no lugarejo, todos só queriam comprar no armazém do Juca, tanto pela variedade e estoque como pelo preço e atendimento. Não fiava, vendia somente a dinheiro, não colocava a conta no prego, se alguém lhe falava em fiado, ele tinha a resposta na ponta da língua: - não vendo fiado! Quem vende fiado está sujeito perder o freguês e o amigo. Se não vendo, posso perder o freguês mas não perco o amigo.
Os fofoqueiros diziam que seu “Juquinha” (a maioria chamavam-no assim, pela sua baixa estatura), tinha construído seu patrimônio trabalhando inicialmente numa carvoaria que terminou como sócio; depois, vendendo gado, cavalos de raça e as mais variadas espécies de muares em feiras e exposições de animais em cidades do interior de Minas Gerais e do interior baiano, notadamente, as cidades de Itapé e Itapetinga que tinham um comércio tradicional de animais que extrapolava fronteiras. As más línguas diziam que seu “Juquinha” tinha aptidão inata de transformar um pangaré num animal de rara qualidade. Ressalvavam que ele não fazia por dolo, para enganar o comprador, mas pela capacidade natural de convencer o comprador à aquisição dos seus animais e enfocar, somente, as qualidades deles.

II

Leôncio Félix dos Santos, era um homem maduro, beirando à meia idade. Os cabelos já começavam encanecer em grande parte. Era um homem alto, branco e vistoso. Com uma quantidade de filhos acima da média, a maioria adulta. Um dos filhos, orgulho da família, tinha assentado praça na briosa policia baiana, no início da década dos anos de 1950. Leôncio não se cansava de exaltar as qualidades temerárias do filho (numa época em que o policial militar era escolhido mais pela bravura e força física do que pelo saber), nele depositava todos os projetos malogrados da sua juventude. Qualquer questiúncula dele ou dos vizinhos, o sargento Dílson Félix dos Santos (sargento Dico para maioria), era convocado por Leôncio para ser o delegado e o juiz da contenda. Era comum convocá-lo para situações mais bizarras:
- Zezinho, vai chamar seu irmão para solucionar o sumiço do porco da velha Maria!
Leôncio não era um beberrão, tomava seu pileque na hora do almoço e não mais que isso. Não se podia dizer a mesma coisa em relação ao tabaco. Costumava fazer um cigarro de palha em cada lugar que chegava. Abria seu estojo retangular de alumínio, cheio de fumo picado, cortava uma palha de milho tamanho padrão, enchia a palha com o fumo, enrolando-a, dando forma a um gostoso cigarro, que se não era desprovido de todos os produtos químicos cancerígenos dos cigarros industrializados de hoje, ganhava do cigarro convencional no cheiro e no sabor na opinião dos fumantes inveterados.

Não era um homem rico. Seu patrimônio consistia numa modesta casa residencial e numa pequena propriedade rural donde tirava o seu sustento e da família. Sua fazendola não passava de umas dez hectares. Os cacaueiros tinham sido plantados em boqueirões e sua produção não passava de cem arrobas. Seu maior rendimento provinha do cultivo de verduras, frutas e da criação de galinhas, porcos, marrecos, patos e de outros animais. Além disto, suas terras eram cortadas por ribeirões, represas e minadouros, formando um grande manancial. Desses recursos hídricos, Leôncio tirava o peixe que abastecia sua mesa e a mesa dos
amigos.
Era uma estróina, não tinha nada nas mãos, principalmente, se o pedido partia de algum rabo de saia. Não podia ver uma mulher passando necessidade que não a socorresse com dinheiro ou provisão de alimentos para matar sua fome. Seu socorro, às vezes, era movido somente, por princípios humanitários, por isto, era tão querido e admirado por muitas moças e mulheres livres de sua convivência. Sua esposa, D. Ana, era quem mais entendia e ajudava na filantropia do marido, sem ciúmes, talvez, movida pelo sentimento inconsciente e corporativista do gênero feminino.


III

Quem não a conhecia, jamais diria que aquele pedaço de mulher chegasse para o Juca. Flordeliz Alves Assunção no batistério e D. Flor para todos. Era uma mulher alta, morena, cabelos pretos e escorridos, olhos negros, dentição perfeita, face esculpida, corpo curvilíneo, peso proporcional à sua altura, seios médios, enfim, uma beleza de mulher. Tinha a perene idade das deusas. As mulheres despeitadas de sua beleza, atribuíam-lhe uma idade exagerada de 35 anos. Os homens enxergavam nela, apenas, a grandeza indescritível do belo. Sua idade era um detalhe do tempo de somenos importância. Os jovens mancebos que transgrediam o mandamento da Bíblia de não desejar a mulher alheia, nos seus sonhos libidinosos, ela aparecia como uma eterna e jovem princesa.
As más línguas diziam que D. Flor era de origem muito pobre, por isto, tinha sido presa fácil para seu Juquinha. Os mais amigos diziam que tinha sido um casamento por amor, não obstante Juquinha ser um homem de pequena estatura, tinha tido o seu charme quando moço. Além de Juquinha ser um gigante empreendedor e um trabalhador incansável, possuía uma lábia inigualável, capaz de romper quaisquer sentimentos contrários.
D. Flor, aparentemente, demonstrava um afeto especial pelo marido. Ajudava-lhe gerir os negócios. Com postura de mulher casada mas sem afetação, atendia os fregueses de sua casa comercial com espontaneidade e gestos impecáveis. Os limites das suas relações com a clientela, estavam circunscritos, exclusivamente, às praxes comerciais. Jamais alguém tinha sido testemunha de qualquer ato suspeito de D. Flor. Os seus empregados adoravam-na. Jamais suspendia a voz ou ralhava com algum empregado para corrigi-lo. Se a necessidade imperava, chamava o empregado ao improvisado escritório e o aconselhava com educação, porém, dura e firme se as circunstâncias exigiam.
Juca e D. Flor tinham tido dois filhos, um casal. O filho mais velho já adentrava à adolescência. A menina tinha uma pouco mais de 10 anos de idade. Soube-se depois que ambos tinham seguido a carreira eclesiástica, o filho mais velho indo até o fim, inclusive, recebendo as ordens sacerdotais e ingressado numa missão humanitária para prestar serviço em terras africanas. A filha ao longo de algum tempo, deixa tudo para trás quando já era noviça e casa-se com um moço rico.


IV

Os negócios do seu Juquinha iam de vento em popa. Já pensava em
ampliar sua casa comercial com a abertura de uma filial na outra ponta da cidade chamada Cajueiro. Para concretizar este projeto, ele adquiriu uma casa velha, edificada num terreno comprido e largo em uma rua de estratégia comercial. A casa foi parcialmente demolida, suas paredes
internas foram derrubadas, seu telhado substituído por uma espessa laje e
no lugar da antiga casa velha, pouco e pouco foi
surgindo um espaçoso salão com infra-estrutura sanitária para o uso separado de homem e mulher. Uma pequena sala contígua para um pequeno mais acomodável escritório e mais nos fundos do terreno, anexo ao salão principal e ao escritório, seu Juquinha tinha feito outro espaçoso salão com portas de ferro laterais e entradas independentes para carga e descarga de mercadoria.
Fazia parte também do salão principal, um espaçoso mezanino em forma de U, que seu Juca tinha incluído no projeto de construção, que seria o espaço para exposição e venda de utensílios domésticos, da xícara à panela de pressão (utensílio em voga), pequenas ferramentas rurais e utensílios de caça e pesca.
Seu Juquinha foi sem dúvida um dos precursores do mercado moderno tanto quanto à variedade de produtos a varejo que oferecia tanto quanto à forma de atendimento. Pois na entrada do mezanino instalou uma catraca e um balcão-caixa que em que o cliente depositava nele as mercadorias e pagava ao preposto, os produtos escolhidos. Para que não houvesse mão-de-gato, seu Juquinha colocou dois funcionários apostos e vigilantes e, em dia de feira-livre (o movimento da loja aumentava), acrescia o número desses funcionários-vigias. Se algum malandro era flagrado surrupiando o alheio, ele era discretamente agarrado e encaminhado ao gerente, se reincidisse era encaminhado à polícia.

Depois que essa loja foi inaugurada, seu Juquinha foi deixando à mulher a direção da matriz. Se alguma circunstância exigia sua presença, lá pisava e pouco ficava. Sua esposa reclamava:

- Juca, você deixou toda responsabilidade do armazém para mim! Não acha demais? – Ele justifica:
- Nós somos os donos. O boi engorda com o olho do dono... Ademais nega, tenho que colocar nos trilhos o novo negócio e escolher dentre os novos funcionários um gerente e um sub-gerente, isto leva tempo.
D. Flor deixou de queixar-se. Entendeu que o marido tinha razão, não era fácil encontrar gente de confiança e liderança para gerir os negócios, afora o fato dela ter conhecimento como ninguém, da reposição da mercadoria, do estoque, o valor agregado de cada produto, os encargos financeiros da pequena empresa e a folha de salário e previdência dos empregados.

V

Juca era afável, bom interlocutor, não vendia fiado, mas sabia como ninguém solucionar a carência e o poder de compra de cada cliente. Se o produto que o freguês queria levar o valor estava acima de sua posse, Juca dava um jeitinho, indicando outro produto mais em conta ou diminuindo nquantidade, todavia, o cliente sempre saía com a mercadoria e satisfeito. Ele sentia-se frustrado quando falhava no convencimento e o freguês saía de mãos abanando. Ele dizia que seu maior patrimônio era sua freguesia, argumentava para os empregados, principalmente, para os de má vontade:
- Meu filho, se a mercadoria apodrece ou fica encalhada na prateleira, perde eu e você. Eu, porque só ganho se houver rotatividade e você na minha inadimplência em lhe pagar o salário. Por isso filho (ele chamava todos empregados de filho), temos que exercitar sempre a arte de vender!...

VI

Não obstante a habilidade e o afastamento parcial do seu Juquinha, a matriz nas mãos de D. Flor tomou um novo impulso. O fluxo de clientes aumentou, consequentemente, a receita. A dona do estabelecimento se desdobrava para atender ao chamamento de todos. Embora assessorada pelos empregados, D. Flor fazia questão de dar aquele toque feminino no atendimento. Dentre todos os clientes, Leôncio Félix se tornou mais amiúde. Era comum vê-lo conversando com a proprietária do armazém quase todos os dias.
Há um dito popular que diz: “o povo aumenta mas não inventa”; então, “onde há fumaça, há fogo.” Começaram surgir comentários desairosos sobre Leôncio Félix e D. Flor. Inicialmente eram cochichos, ao longo do tempo, os cochichos foram tomando formas explícitas. Os donos da vida alheia não pediam mais segredo. Leôncio Félix, cada dia se fazia mais íntimo e necessário ao casal. Várias vezes, em público, seu Juquinha tinha lhe solicitado ajuda na condução dos negócios, principalmente, nos finais de semana e feriados quando dobrava o movimento da freguesia. Leôncio Félix se desdobrava em préstimos e atenção aos clientes, quem não o conhecesse, tomaria como dono ou gerente do empório.
Juca passou ser visto por alguns como um conformado cabrão. Outros mais complacentes, achavam-no vítima de traição da mulher e do amigo. Alegavam que nessas circunstâncias o marido traído era o último a saber. Os mais afoitos e inconseqüentes diziam gracejos quando D. Flor ia ou vinha da missa. Não se sabia se os gracejos eram ouvidos ou ela dava boca calada como resposta, preferindo a máxima: “bronca é arma de trouxa” ao confronto com moleques desocupados que terminaria numa auto-denúncia. Ela sabia que nenhum desses moleques, teria condições de peitá-la, ademais, ela continuava tendo a admiração e o respeito da maioria. Pessoas de bom senso não se envolvem em problemas conjugais: “entre marido e mulher não se mete a colher!...” Além disso, havia implicações jurídicas, difamação sem provas, é cadeia ou bala.

A filial J&F Ltda. tinha caído no gosto do povo. As pequenas vendolas do cajueiro tinham fechado as portas. Era grande o movimento de carga e descarga na casa J&FLtda. Seu Juquinha tinha resolvido o seu lugar-tenente com a recontratação do seu irmão José Assunção, tratado por todos como “Zito”. Seu Zito já tinha trabalhado na matriz algum tempo, deixou o emprego por motivos de foro íntimo. Falava-se a boca pequena que ele era apaixonado pela cunhada. Nada tinha sido comprovado, sabia-se apenas que havia muito apreço e consideração entre ambos. Era Deus no céu e D. Flor na terra. Ninguém atrever-se-ia falar algum senão dela em sua presença e a recíproca era verdadeira. Foram inúmeros os entreveros com o marido em defesa do cunhado:

- Ele não é somente seu empregado, ele é seu irmão. Deixe de rabugice! – Ele era mais racional e menos emocional:
- A empresa (ele deu para chamar de empresa sua casa comercial depois de algum tempo), não tem irmão. Eu que sou o dono sigo à risca todas as normas para o seu bom andamento.
- Vá para o inferno com sua empresa!... – E dava-lhe as costas. Passava dois ou mais dias emburrada. Juquinha tinha que empreender todo esforço de reconciliação. Ele era louco pela mulher.

VII

José Assunção era mais velho dois anos que o irmão. Tinha nascido em 1922 em Pirajá do Sul e vindo morar no São Caetano, ainda rapazola. Estava com 39 anos de vida, três filhos e uma mulher bonita e trabalhadora.
Embora ele tenha vivido desde cedo no comércio, comprando e vendendo, não tinha tido a mesma sorte do irmão. Quem o conhecia, atribuía seu fracasso à vida mundana de prostíbulos e bebidas. Quanto mais ele ganhava, mais gastava. Seu irmão, ao contrário, era um mão-de-vaca, um sovina, um muquirana. Os mais íntimos diziam que Juquinha só abria a mão na hora de receber a hóstia ou rezar o padre-nosso.
Seu Zito nunca se firmava comercialmente. Sempre vivia à sombra do irmão. As pessoas diziam que ele era mais inteligente do que Juquinha e o igualava em honestidade. Sua mulher e os seus filhos, com todos os percalços, adoravam-no. Alguém se atrevesse falar do pai ou do marido. Para eles, Zito era um ingênuo, não tinha nada nas mãos, por isto, não tinha tido a mesma sorte do cunhado e do tio.
Zito ao contrário do irmão, era um homem alto, moreno, extrovertido, acreditava-se que tinha puxado à família do seu pai, enquanto Juca tinha puxado à mãe até na altura. Entretanto, com todas essas diferenças físicas e psicológicas, Zito e Juca se adoravam, podiam brigar ou discordar um do outro, mas tudo virava às avessas se alguém intercedesse a favor de um deles, mesmo as suas mulheres ou os filhos.


VIII

Ano de 1961, os negócios da família Juca cresciam a olhos vistos. As duas casas comerciais tinham um estoque considerável. Juca só comprava a dinheiro, a pechincha e os descontos eram uma praxe nas negociações de Juca com os seus fornecedores. Se o fornecedor não oferecia o produto com bom preço e qualidade, ele não comprava e procurava outro fornecedor. Juca já falava em diversificar seus lucros em fazenda de cacau e pecuária.
Ninguém duvidava dos projetos de seu Juquinha. Quando ele falava para família seu próximo passo comercial, era porque já tinha construído de maneira discreta, as condições e os recursos para essa finalidade. Por isto, todos da família sabiam que era questão de oportunidade para ele se tornar um próspero fazendeiro de cacau ou de gado. Sabiam também, que daquele momento em diante, ele ia ficar na espreita igual uma onça quando quer abocanhar sua presa.
Sua estratégia para comprar alguma coisa relevante era soltar uma conversa aqui, outra conversa ali, quer mas não quer, não é pra mim, não tenho dinheiro, isso é para o futuro, assim, ele ia espalhando o bote... A noticia espalhava-se como fogo de monturo e as ofertas começavam aparecer. Dessa maneira sorrateira, ele tinha comprado as duas casas comerciais e outros imóveis urbanos.
Quando alguém lhe oferecia algo para comprar, tinha como princípio dizer não. Não lhe interessava por esse ou aquele defeito. O valor sempre estava superfaturado, o sicrano ou o beltrano estava escorchando, daquele jeito não tinha necessidade e não queria vender o produto e, por sua vez não tinha nenhum interesse em adquiri-lo e com esse jogo de esconde-esconde, acabava realizando seus intentos.


IX

Final do ano de 1962, seu Juquinha tinha finalmente, adquirido uma sesmaria de terra. Exagero dizer sesmaria, porém era uma fazenda com uns 500 hectares. Tinha sido um negócio intermediado por Leôncio Félix. A fazenda estava maltratada. Tinha sido de um casal idoso. Seu Juquinha tinha dado em troca dela, três casas residenciais modestas na cidade e um bom valor em espécie. O negócio tinha sido tão vantajoso que na hora de escriturá-la, Seu Juquinha sugeriu ao tabelião que se acrescesse o seguinte: “Fazenda Ouro Achado, antiga Três Corações”.
Realmente, não podia ter encontrado outra mamata melhor. Embora a fazenda estivesse maltratada, possuía umas cem cabeças de gado, uns duzentos hectares de cacau (era mista), produtivo. A sede era uma casa grande e avarandada. Tinha seis quartos, três banheiros, duas salas enormes, uma cozinha grande e um reservatório com capacidade para 5000 l de água que recebia água encanada contínua de um minadouro de uma serra, quando o reservatório excedia sua capacidade, a água descia por um “ladrão” para uma enorme presa que ficava nos fundos da casa numa distância razoável. A presa possuía um sangradouro para dar vazão da água acima do seu nível. Na parte baixa da presa havia construído uma espessa alvenaria que servia para as pessoas pescarem sentados nela ou para a molecada pular de cima dentro d´ água.
A fazenda ainda dispunha de três ou quatro avenidas de quartos para trabalhadores solteiros e quatros casas para trabalhadores casados com mulher e filhos. Currais e estábulos para gado leiteiro. Só tinha luz elétrica na casa do patrão e na casa do gerente, mesmo assim, com um motor a diesel de poucos cavalos, acoplado a umas baterias de caminhão que sustentavam meia dúzia de lâmpadas por duas ou três horas com um dispositivo que à medida que luz ia perdendo a intensidade o motor automaticamente tornava funcionar re-carregando as baterias.
Juca convocou seu irmão Zito para tomar conta da roça. De início o irmão ficou irredutível. Alegando que não poderia sair da cidade, deixando mulher e filhos em idade escolar para se embrenhar na roça e ir “arrastar cobra”. Seu irmão Juca procurou persuadir-lhe:

- Zito, aqui na cidade não existe mais possibilidade de crescimento. Na fazenda, além do salário que lhe pago aqui, você terá 25% do lucro líquido anual, você sabe quanto isto representa?
- Juca, eu gosto muito de você, porém, sua fazenda tão cedo não terá boa produção! Além disso, tenho aqui, mulher e filhos na escola.
- Você não está enxergando as possibilidades potenciais que essa fazenda representa. Ela tem 200 ha de cacau produtivo e umas cem cabeças de gado. Ela está maltratada, mas eu vou lhe dar mais 50 homens por seis meses, para você deixá-la limpa, tirar todos os brotos, cabrocar e vou comprar mais uns vinte garrotes, garanto-lhe que daqui um ano, se não houver intempéries, você estará cheio de dinheiro. Além do mais, não é necessário levar os filhos, eles ficam lá em casa como os meus. – Teceu tanto que o irmão mudou-se pra fazenda com mala e cuia com a mulher.


X

Juca tinha razão, quatorze meses depois, os resultados do cacau foram promissores. A produção quintuplicou, o gado já estava em ponto de corte e as vacas leiteiras sustentavam de leite os trabalhadores e ainda sobrava leite para se fazer queijo e coalhada. Juca era decerto um iluminado!...

XI

Alguém já disse que o homem que não é supersticioso não tem alma. Juca era supersticioso e beato por natureza. Se não fosse a vocação comercial, o desejo de ganhar dinheiro, ele seria padre. Este desejo crescente contrastava com sua fé. Os amigos brincavam dizendo: “Juquinha vai à igreja barganhar com o Senhor e sempre sai ganhando”. Havia uma certa maldade dos amigos. Juquinha era um homem bom, aprendeu ganhar dinheiro no início da vida por necessidade, depois vestiu o hábito do monge às avessas, acostumou-se acumular.
Acordou naquela sexta-feira 13 com pressentimentos ruins, maus agouros, sentia que alguma desgraça estava a caminho. Fez suas orações matinais, pegou o carro e saiu cedo ainda, deixou mulher e filhos na cama.
Após algum tempo rodando pela cidade, sem rumo certo, passeando à toa, foi para sua filial. Lá, os empregados já estavam apostos, o gerente com voz de comando sugeria novas ações para aquele dia. Seu Juca entrou, cumprimentou todos de maneira cortês e dirigiu-se para seu escritório que ficava no fundo da loja. Depois de mexer em alguns papéis espalhados sobre a escrivaninha, encontrou uma carta. Leu o nome do remetente (não o conhecia), observou que lhe estava endereçada. Não a abriu. Não era uma carta comercial, pelo envelope sem selo ou carimbo dos Correios e pelo sobrescrito, pareceu-lhe uma carta anônima à primeira vista. Por isto, chamou o gerente:
- Mendes quem entregou esta carta? – O gerente pegou a carta, leu o sobrescrito e respondeu:
- Seu Juca, não sei!... – E como ela vai parar em cima da minha mesa? – O gerente estava parvo e atrapalhado, não admitia que algo ocorresse em baixo do seu nariz e ele não tivesse conhecimento. Será que havia entre seus prepostos alguém querendo-lhe puxar o tapete para assumir o seu lugar? Depressa, começou remediar o fato:
- Seu Juca, dê-me por favor essa carta um instante, nem que tenha de demitir todos os funcionários, alguém terá que me dizer porque a colocou em seu escritório sem passar por mim, exceto, se a entregou à Srta. Marlene (secretária particular do seu Juca), mas terá que aparecer quem a colocou aqui, afinal, carta não tem pernas!... – Juca começou amenizar o problema – Calma rapaz, não se pode demitir alguém por não se encontrar o culpado e não sabemos se existe culpado. Primeiro, vamos aguardar a minha secretária, talvez, ela saiba quem a entregou; depois, iremos ler a esta carta, pode ser alguma coisa de somenos importância. Chamei-lhe aqui porque não conheço o remetente e não vem dos Correios – neste momento, a secretária, Srta. Marlene chega ao trabalho, cumprimentando o gerente e o patrão:
- Bom dia Senhores! Atrapalho? – Não, senhorita. Pelo contrário, poderá nos ajudar... quem lhe entregou esta carta? – A moça pegou a carta, a examinou, enfim, lembrou-se:
- Esta carta seu Juca, foi entregue pelo Natanael que trabalha no mezanino. Ele me disse que a encontrou numa das prateleiras e mandou lhe entregar. Está endereçada ao senhor. – O gerente ameaçou convocar o empregado, foi retido pelo patrão:
- Não, Mendes. Já sabemos como ela vai parar aqui no escritório. Acredito que Natanael não terá outra explicação além dessa que a senhorita Marlene deu. Pode voltar ao seu posto. Hoje, é sexta-feira, final de semana, a maioria dos trabalhadores gosta de fazer feira neste dia.
Quando os empregados deixaram sua sala, Juca sentou-se em sua cadeira funcional móvel, frente à sua escrivaninha e começou abrir a carta pausadamente. Era um carta escrita com letra de forma e inteligível. O pseudo-remetente inicia desculpando-se por não se identificar. Em seguida descreve um rosário de situações suspeitas envolvendo D. Flor e Leôncio Félix. Termina a missiva dizendo que muitos moradores do São Caetano eram testemunhas por ouvir dizer; outros, tinham flagrados pessoalmente o casal prevaricando. Diziam ainda que os seus empregados da matriz eram as testemunhas mais significativas. Não os tinham denunciado para não comprometerem os seus empregos, ninguém se atreveria no período de vacas magras, colocar o seu pescoço no patíbulo. Além disso, muitos criam que havia um certo conformismo não explícito e conveniente dele, não foi Leôncio Félix que lhe propiciou uma sesmaria de terra por preço de banana? Quando Juca terminou de ler a carta, quedou-se sobre a mesa. Não podia acreditar que tanta infâmia fosse verdade. Teria sido sua mulher tão pérfida e de tanta maldade? Seu amigo tão calhorda? Não, não era possível, deveria estar tendo um grande pesadelo!... Adormeceu em cima da carta.


XII

- Seu Juca... seu Juca... seu Juca, o senhor está bem? – Acordou-o, a secretária apavorada. Ele levantou-se, extremamente pálido:
- Senhorita Marlene, chame o Mendes e venham aqui depressa, quero-lhes passar algumas instruções, tenho que viajar. – Juca avisou-lhes que iria passar dois ou mais dias fora, que eles assumissem a direção da empresa, que comprassem de acordo às demandas e não deixassem faltar nenhum produto nas prateleiras. O resto da receita, eles depositassem na conta da empresa. Iria à fazenda resolver um problema imediato que não informassem o seu paradeiro a ninguém e não tomassem nenhuma decisão contrária daquelas que ele estava lhes dando, senão, não gozariam mais de sua confiança.

- Nem de D. Flor, seu Juca? – Não, rapaz de ninguém. Estou depositando a minha confiança na capacidade administrativa de vocês, não quero me decepcionar. Gostaria que o Sr. Mandes levasse isso (entregou-lhe um bilhete), para D. Flor.

XIII

A Voz da Liberdade era formado por meia dúzia de alto-falantes e um estúdio moderno para os padrões da época. Trabalhava na Voz da Liberdade, três locutores (um por turno), três discotecários, um diretor de programação e um diretor comercial, além do proprietário. Não era uma emissora de rádio, mas tinha uma estrutura que fazia inveja às pequenas emissoras de rádio do interior. Tinha todos anunciantes do São Caetano, seus jingles ganhavam pela sonoridade e criatividade. A Voz da liberdade anunciava óbitos e o horário de sepultamento, casamentos, aniversários, últimas notícias do Brasil e do estrangeiro, prestava serviços sociais, enfim, era um serviço de comunicação à altura dos moradores e do comércio do lugar.

- Senhor Francisco, recebi esta carta ontem, posso incluí-la na programação, abrindo o editorial? – Francisco, diretor de programação, leu a carta, fez algumas conjecturas sobre a maldade humana, respondeu:

- Meu rapaz, quantos anos você tem? – Fiz 22 anos no mês de julho deste ano. – Mário, deixa pra lê-la quando completar os 50 anos de vida, você quer morrer na flor da idade? – Perdoe-me senhor Francisco, mas não ouço outra coisa aqui, senão, a defesa da liberdade de imprensa, inclusive, sorrateiramente, os senhores peitando os militares de plantão no governo – Você tem razão Mário, combatemos idéias déspotas e prisões injustas de compatriotas, todavia, não mexemos e não gostamos de mexer em assunto de família, denegrindo a honra de A ou de B, honra lava-se com sangue. Carta anônima é coisa de covarde, que destrói pessoas por trás de um anonimato. Iremos incluí-la na programação dando uma resposta contundente a esse escroque da sociedade, jamais iremos abordar problemas de infidelidade mesmo que tivéssemos uma montanha de provas, isto é assunto de velhas mexeriqueiras que não têm o que fazer.
Mário saiu da sala do diretor bufando de raiva, era um locutor novo, queria dar todas informações, mas, entendeu que o diretor de programação tinha sua razão, não era justo transformar a imprensa em um serviço de aleivosias e perfídias em informações sérias e necessárias aos interesses da comunidade, ainda mais informações embasadas em carta anônima.
À noite, Mário com seu vozeirão, lia uma nota da redação, explicando que a Voz da Liberdade não estava a serviço de atitudes espúrias, de mexericos, de pessoas inescrupulosas que se escondiam em cartas anônimas para denegrir e desonrar pessoas de bem que contribuía para o progresso daquela comunidade. Que o serviço da Voz da Liberdade era usado para o crescimento e a preservação de princípios morais edificantes e na defesa da família grapiúna. Leu a nota duas ou mais vezes. A maioria das pessoas que estavam na praça passeando, soube pelos burburinhos e cochichos que era uma resposta aos comentários que se arrastavam ao longo de meses de Leôncio e Flordeliz Alves Assunção, a conhecida D. Flor, mulher casada com um homem empreendedor e de ilibada conduta moral, Juca Assunção.


XIV

Zito não sabia mais como proceder para tirar o irmão daquele marasmo, daquele acabrunhamento. Juca taciturno, lia o tempo todo àquela carta, parece que queria descobrir na repetição da sua leitura, as respostas para amenizar seu desespero. Sua cunhada, também, lhe fazia todos gostos. Inventava as mais variadas comidas para despertar a comilança do Juquinha e levá-lo esquecer os seus problemas conjugais. E, aconselhava-o

- Compadre Juquinha, dê tempo ao tempo. Mande comadre passar uns tempos na capital. Nesse ínterim, o senhor terá tempo e cabeça para apurar os fatos. Pode ser aleivosia dessas pessoas, elas são invejosas, querem atrapalhar sua vida e a de comadre.- Zito concordava com a mulher e acrescentava:

- Meu irmão, a mulher tem razão. Nesse mundo de meu Deus o que não falta é inveja e olho grande. Não sabemos também até que ponto essas infâmias são verdadeiras. Gosto muito de comadre e não acredito em um til no que lhe enviou esse maluco ou essa maluca. Se você não quiser mandar comadre para capital, mande-a para aqui que Joana irá cuidar dela como se fosse uma irmã. Aqui ela não será descoberta e você cuidará do restante. Mesmo que seja verdade, você não irá deixá-la na miséria, ela é mãe dos seus filhos. Nada melhor que os pintos fiquem sob as asas da galinha. Ela também tem seu merecimento, muito lhe ajudou!...


XV

Não foi necessário Juca levá-la para Salvador. As circunstâncias foram atropelando os fatos. A esposa de Leôncio Félix, também, tinha recebido uma cópia da carta. Como era uma mulher atirada, destemida e barraqueira, quebrou o pau com o marido e fez um furdunço na porta de Juca chamando à atenção da rua. Foi um bafafá, um Deus nos acuda, a mulher de Leôncio era mesmo uma maluca e D. Flor ficou na casa do sem jeito e sumiu com as economias que tinha na calada da noite.
Leôncio também mandou-se para sua roça com ajuda do filho militar, senão, seria esfaqueado pela mulher.
- Mãe, isso é coisa de homem! Ninguém é santo, quem acha encaixa. A senhora quer ir para cadeia, querendo matar o seu marido?...




XVI

O tempo é o senhor da razão. Nada melhor do que um dia após o outro. Juca voltou para os seus afazeres. Embora Juca continuasse arredio, conversando com os seus clientes só o necessário, não demoraria retornar à rotina e às festividades de sua igreja. O pároco, depois do seu afastamento, tinha-lhe feito diversas visitas. Nelas, sempre invocava o perdão e a solidariedade.

- Lembre-se do que Cristo respondeu aos escribas e fariseus da mulher que foi encontrada em pecado: “quem não tem pecado atire a primeira pedra”. De fininho foi saindo um por um, principalmente, os mais velhos...

- Frei Raimundo, Jesus é o pai de todos nós. Qual é o pai que não perdoa seu filho? Não possuo esse desígnio de perdoar. Entretanto, desejo que eles sejam felizes – o amado e a amante - , porém, nunca vou esquecer que eles foram desleais e traidores. Por desencargo de consciência, dei-lhe uma casa em nome dela e dos filhos em um dos melhores bairros de Salvador e mando-lhe uma pensão mensal. – Frei Raimundo ficava sem argumento.

XVII

Dois anos depois:

- Mandou me chamar patrão? – Sim. Estava fazendo o quê? – Estava cabrocando naquela parte da roça onde mora João Dias. – Tenho um serviço extra, que exige perícia, confiança e lealdade. Perícia eu sei que você tem, preciso, entretanto, saber se você é confiável e leal!... – Patrão, pelo jeito a coisa é séria? – Sim. É Leôncio... você disse que quando eu quisesse... chegou a hora! – Palavra dada patrão, palavra emprenhada. Diga onde e quando, este negro aqui, nunca falhou com os amigos. Pensei até que já tinha esquecido. – Não, estava esperando a poeira baixar. Cuidado com a língua, ele tem um filho sargento da polícia e Juca não quer nem ouvir falar nessas coisas... – Deixe comigo, conheço a natureza do seu Juquinha, é homem de igreja.


XVIII

Um mês depois o São Caetano estava em polvorosa. A polícia militar, por corporativismo, estava em todo lugar. Leôncio Félix tinha sido assassinado com um tiro na testa, dois quilômetros depois de sua roça. Não havia vestígios do assassino. Leôncio Félix recebeu um tiro num lugar mortal em um caminho de mata fechada às 17:00 horas de uma quinta-feira. Seu animal retornou intacto para roça com sela e alforje.
Supunha-se que tinha sido um crime de mando e feito por um profissional. Além de não terem roubado nada, encontraram ao pé de uma frondosa jaqueira, um embornal com resto de farinha e pontas de cigarro no chão. O assassino tinha escolhido estrategicamente aquele lugar, ficava na saída de uma curva e pouco antes de uma cancela. Se o primeiro tiro não fosse mortal, o cavaleiro não teria tempo e condições de abrir a cancela, teria que voltar, oferecendo as costas ao chumbo de clavinote.

Muitos desafetos da vítima foram ouvidos pelo delegado, inclusive, o negociante de secos e molhados e fazendeiro, Juca Assunção. Como era de praxe para pessoas abastadas, levou consigo dois advogados. Provou que não tinha o menor interesse na morte de Leôncio Félix, que sua vida tinha voltado à normalidade há dois anos e tanto. Estava noivo e sua ex-mulher fazia parte do passado. Sugeria ao delegado, data vênia, que outras vítimas de Leôncio Félix fossem ouvidas, já que ele possuía uma lista enorme de inimigos. Ele era um homem de igreja e do trabalho. Não tinha tempo para ficar maquinando morte de ninguém.
O filho militar de Leôncio, sargento Dico, foi o primeiro a descartar qualquer participação de Juca no crime. Achava-o por demais religioso e íntegro. Lastimou em diversas ocasiões os problemas conjugais do casal Assunção em que seu pai tinha sido o principal agente.

XIX

Na Fazenda Ouro Achado, o negro Teodoro recebia do senhor Zito Assunção, os elogios pelo serviço assim que a notícia da morte de Leôncio tornou-se pública:

- Negro, gostei do serviço. Juca não pode nem sonhar que estou por trás desse crime. Comprei a rocinha de Manoel das Onças para você. Não precisa ninguém saber que lhe dei. Espalhe que tinha guardado comigo umas economias com essa finalidade. Ainda lhe darei seis meses de salário para você tocar sua roça com tranqüilidade.
- Patrão, já que o Senhor comprou não vou lhe fazer desfeita. Não vou trabalhar lá. Nela vou botar um irmão que anda arrastando cobra para os pés no roçado dos outros. Enquanto o senhor me quiser, estarei à disposição. Em relação ao serviço do canalha, não se preocupe, não fui mandado pelo senhor. Fiz porque considero seu Juca como um pai, tive pena do pobre naqueles dias que passou aqui todo macambúzio, jurei para mim mesmo limpar a honra do patrãozinho, estava somente esperando o momento oportuno.- Zito lhe agradeceu. Ponto final, vamos trabalhar, quem trabalha Deus ajuda.


XX

Dez meses depois da morte de Leôncio Félix, morre na capital, nos braços dos filhos, Flordeliz Alves Assunção, D. Flor para os amigos e parentes. Morreu esquecida e ultrajada. Seu nome no lugarejo do São Caetano, era emblema de mulher desavergonhada. Não tinha lamentado a morte do ex-amante, pelo contrário, tinha sentido uma pontinha de satisfação e vingança. Tinha certeza que não tinha sido Juca, o conhecia como ninguém. Ele seria incapaz de matar uma barata. Quando fugiu, o fez por remorso e vergonha e não por medo dele.
Prestes a morrer (sérios problemas de cardiopatia), escreveu para o ex-marido pedindo perdão. Na carta, dizia-lhe que não iria viver muito tempo e queria seu perdão. Não se eximia da culpa mas tinha sido ludibriada pela lábia do seu sedutor. Não acreditava em feitiço, porém, seu envolvimento com seu ex-amante só tinha essa justificativa.
Disse-lhe que ainda o amava e o admirava. Na sua falta cuidasse dos filhos e de seus estudos.
Ele nunca respondeu suas cartas. Quando escrevia, escrevia para os seus filhos. Suas cartas eram para saber se eles estavam precisando de alguma de coisa, como iam nos estudos se eles viriam passar as férias na fazenda, se estavam gostando da escola etc, etc. Porém, não fazia nenhuma referência à mãe deles.
Juca soube muito bem cultivar o desprezo pela ex-mulher. Se ele a tivesse batido ou a tivesse agredido fisicamente, ela não teria sofrido tanto quanto tinha sofrido no seu auto-exílio.

XXI

A igreja estava repleta. Pessoas da alta sociedade tinham sido convidadas. Zito, a mulher e os filhos estavam sentados na primeira fila. Os fotógrafos disputavam os lugares estratégicos. Os padrinhos dos noivos estavam num lugar especial, perto do altar. A porta-aliança e as crianças incumbidas de ajeitar o vestido da noiva, levar o buquê, espalhar as flores no tapete da igreja, tinham tomado seus lugares. O padre e os sacristãos demonstravam em certo vexame e pressa.
O coro constituído de soprano, contralto, orfeão, tenor e baixo, começou executar músicas sacras e músicas de Beethoven, de Mozart e Haendel, enquanto os noivos não chegavam, para deleite da platéia.
Juca, para não quebrar a tradição do casamento, chegou junto com os filhos antes da noiva. Estava nervoso mas feliz. Seus filhos não se cansavam de abraçar e acariciar o pai, pareciam contentes.
A noiva estava linda. Não parecia nada com a secretária perfeccionista e preocupada do dia-a-dia das casas J&F Ltda. (o logotipo da empresa ficou o mesmo, onde se lia: Juca e Flor, lia-se agora, Juca e Filhos). A senhorita Marlene Marióstenes, passaria doravante, assinar Marlene Marióstenes Assunção, esposa do empresário e fazendeiro Juca Assunção.

Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero Literário: Conto
Texto livre
Proibido plágio ou modificação
15/01/2007
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 17/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr