Textos


O suicida
R. Santana

     O sargento Caio Júnior se lembrava dos rodeios que fez Dr. Sílvio Schütz para lhe dar o diagnóstico de mal de Parkinson depois de uma bateria de exames que ele se submeteu desde testes musculares, testes de reflexos, passando por tomografia computadorizada, eletroencefalograma até a retirada de um líquido na medula espinhal, uma parafernália de exames...
     Mas Caio entendeu o seu embaraço, é que se não fosse sua rapidez e sua destreza, Dr. Sílvio Schütz teria esticado as botas num acidente de automóvel há 3 anos quando voltava embriagado de uma festa. Lembrava que o Corpo de Bombeiro foi acionado naquela madrugada para lhe prestar socorro e dos 4 passageiros, somente o médico escapou: Caio puxou-lhe do carro com presteza e habilidade, livrando-o daquelas ferragens e da possibilidade do carro rolar na ribanceira e explodir ao encontro de uma pedreira.
     O neurologista empertigado atrás do computador procurava palavras e jeito para dizer a Caio Júnior que o tremor de sua mão era o início do mal de Parkinson:
     - Sargento... eu não sei como lhe dizer... não é comum... pode ser um rebate falso... mas...- Caio Júnior o interrompe:
     - Doutor, fale de uma vez!
     - Calma. Vou lhe encaminhar para um colega mais inteirado dessa doença de Parkinson!
     - Doença de Parkinson, doutor!?
     - Não sei ainda, pode ser um engano, uma troca de pessoa... – ele não se contém:
     - Doutor, soube que essa doença dá em velho, ainda vou completar 40 anos?!
     - Concordo sargento, o mal de Parkinson não é muito comum em pessoas com menos de 60 anos, por isto, estou lhe encaminhando para um especialista, certo que não passou de um lamentável equívoco!... – Caio Júnior se interessa:
     - Doutor me dê o resumo dessa doença e se existe cura?
     - O Parkinson é a degeneração paulatina dos neurônios, afetando os neurotransmissores, é demência, é atrofia pouco e pouco dos membros superiores e inferiores, não se sabe ainda se o mal de Parkinson é provocado por fatores genéticos ou ambientais, não existe cura, mas a medicina dispõe de muitos recursos atualmente, não se desespere, você vai ficar bom!...
     Caio Júnior saiu do consultório atordoado, certamente, o médico estava usando o artifício de ouvir uma “segunda opinião” para lhe poupar constrangimento e desespero antecipados. Não ia fazer novos exames nem procurar outro médico, ele confiava em Sílvio Schütz, além de bateria de exames que fez, os sintomas da doença eram os mesmos que estava sentindo. O médico lhe devia e a Deus sua vida, se naquela madrugada tivesse sido negligente por minutos, ele não estaria ali usando de eufemismo para diagnosticar o incurável Parkinson.
     Dois meses depois.
     Caio Júnior repetiu os exames, o neurologista indicado por Dr. Sílvio Schütz foi mais profissional e menos afetivo, disse-lhe ser raro o mal de Parkinson em sua idade, porém, essa doença já havia se manifestado em pessoas mais jovens, não acreditava em fatores ambientais, no estresse do seu trabalho, mas em complicações genéticas. Embora não houvesse cura, havia tratamento, algumas pessoas levavam anos pra morrer e uma vida quase normal e concluiu:
     - Caio, o homem é mortal são ou doente, porém, a morte não se satisfaz sem um pretexto, enquanto ela não chega, vamos à luta!...
     Ele saiu do consultório médico bufando de raiva, atravessou mais de um quarteirão resmungando: “... pimenta no olho do outro é refresco... O filho da puta pensa que tenho medo de morrer, mas fica doído ficar em cima da cama a mercê de A ou de B”. Quantas vezes arriscou sua vida para salvar gente que não conhecia? Inúmeras. Não passou um dia sequer na corporação sem prestar socorro, em quase duas décadas de trabalho, havia sido honrado com várias medalhas por mérito e bravura. Agora, estava ali engessado por uma doença degenerativa sem nada pode fazer, esperando a morte chegar...
     O sargento concluiu que pouca coisa restava fazer, dali em diante ia adentrar no inferno em sofrimento e dor, não sabia se duraria pouco ou muito tempo, os sintomas da doença começavam incomodar, o tremor da mão já tomava o braço e se não fossem os remédios, o seu lado esquerdo estaria enrijecido, mas seria uma questão de tempo, o processo seria irreversível, mais dias menos dias, ele estaria numa cadeira de rodas, a mulher ou os filhos mais velhos, levando-o dali pra aqui ou daqui pra acolá, mas não ia esperar essa morte indigna, ia dar cabo de sua própria vida, ia se suicidar!...
     Pensou, no início, amarrar uma corda de nylon na cumeeira de sua garagem, colocá-la no pescoço, com o auxílio da escada, em seguida estrebuchar-se enforcado, uma operação simples, ao alcance de qualquer suicida, mas lembrou-se que seria um quadro lúgubre, um impacto soturno na mente dos seus filhos e esposa, não, não, não iria se enforcar... Pensou simular um acidente no carro do Corpo de Bombeiros, todavia, corria o risco de acidente fatal com terceiro ou colega, ideia que matou no nascedouro.
     Se a morte de arma branca não fosse tão dolorida e sinistra iria usá-la, mas pensava que socorrido a tempo e não perfurasse em lugar mortal poderia escapar, aí, teria vergonha de encarar mulher, filho e amigos...
     Concluiu que o mais certo seria usar estricnina, pois em segundos de espasmos musculares, convulsões e asfixias respiratórias o sujeito está preparado para ir à cidade de pés juntos. Além disto, se a morte fosse bem planejada poderia ser confundida com um infarto fulminante. Não iria cometer o mesmo erro de Bentinho em Dom Casmurro, tomaria a estricnina quando não tivesse ninguém em casa, à noite, e em cápsula biodegradável de 50 miligramas, os médicos-legistas demorariam um tempo para descobrirem, mesmo assim, se a família autorizasse a necropsia, o sinistro teria que ter cara de morte natural e ficou para o dia...
Três meses depois.
     O dia D chegou, naquela noite, ele ficaria sozinho, não, ficariam Caio Júnior e Greta Garbo (a gata) a sós, sua mulher e os seus filhos iriam pra festa de aniversário de seu cunhado. Não iria ao aniversário, ideou os mais diversos e convincentes pretextos, ligou para o cunhado e lamentou não poder comparecer, mas desejou-lhe toda sorte do mundo.
     Pela manhã, abriu a Bíblia e ficou espantado no que leu: “... E, se qualquer disser alguma palavra contra o Filho do homem, ser-lhe-á perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século nem no futuro." [Mateus 12:31-32].
     O suicídio é uma afronta ao Espírito Santo, é destruir abruptamente a morada do espírito que Deus deu ao homem, até Judas Iscariotes seria perdoado se não tivesse cometido ato tão desprezível!...
Ficou intrigado com a passagem do Evangelho, mas não mudou de ideia. Cedo ainda, procurou o caminho da farmácia para comprar remédios de cápsulas e mascarar o suicídio, quando no meio do caminho esbarrou num moleque, um meninote, que lhe reconheceu:
     - Sargento Caio Júnior!?
     - Sim!
     - Não se lembra de mim?...
     - Você é..., você é... – deixou que o garoto completasse:
     - João Victor! – Caio não lembrou...
     - O senhor é o meu herói!... – acrescentou:
     - Na parede do meu quarto, tenho suas fotos e os recortes de jornais do dia que me salvou. Lembra, agora?      – Caio lembrou:
     - Você cresceu muito, rapaz!
     - Hoje, faz quatro anos... Quê coincidência, hein? Há quatro anos fui salvo pelo senhor do fogo que destruía a minha casa. O senhor é o meu herói!... – Caio Júnior não valorizou:
     - Meu amiguinho, eu fiz o dever de ofício... – foi interrompido:
   -Não, não, o senhor arriscou sua vida para me salvar!... Como gratidão, acendo uma vela para Nossa Senhora todos os dias e lhe coloco nas minhas orações... - A vida tem dessas coisas... Shakespeare teve razão quando disse: “Existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. Feliz coincidência de Caio Júnior ter encontrado João Victor no caminho da morte, ele quedou-se quando o garoto lhe disse: “O senhor é o meu herói” e “lhe coloco nas minhas orações”. Ficou absorto por alguns segundos pensando na ironia do destino: “Será que Nossa Senhora tinha intercedido naquele encontro?...”, “Fazia tanto tempo que a despeito da descrença de muita gente tinha entrado numa cortina de fogo e salvo João Victor no interior do apartamento, protegido por um edredom encharcado de água, enquanto os colegas rompiam o fogo, em sua retaguarda, com enormes jatos d’ água”.
O moleque o chama à realidade:
     - O senhor vai à farmácia?
     - Você salvou o herói...
     - O quê!?
     - Os heróis não morrem!
     - Não entendi!
     - Ninguém entende Deus...
     O homem é suas circunstâncias, a circunstância quis que ele fosse esbarrado em João Victor naquele dia, o “Mundo das possibilidades” lhe foi oportuno ou o destino, então, a intercessão da Providência.
     Para Caio Júnior: “Os heróis não morrem...”
 


Autor: Rilvan Batista de Santana 
Licença: Creative Commons
Membro da ALITA
Imagem: Google
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 13/08/2012
Alterado em 17/04/2024


Comentários


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr