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O Diário de Manduca

O Diário de Manduca
R. Santana



Segunda-feira 1. Depois de muitos anos de separado e divorciado, mulher, filhos e netos esqueceram de mim. Moro numa kitnet de 30 m² na Rua das Alamedas, nº. 66, Aptº. 606. Bairro X e cidade Y. Sozinho, aposentado e sem dinheiro no bolso, passo o dia perambulando, papeando com velhos amigos e amigos velhos, nas ruas e nos bancos dos jardins públicos.
Chamam-me de Manduca, eu gostaria que me chamassem de Armando, mas o vulgo é comum às pessoas de somenos importância, já que não sou o Dr. Armando Félix de Sá, ou o Sr. Armando Félix de Sá, acostumei-me com “Manduca”, “o velho” e para as crianças, “vô Manduca”.
Ultimamente, passo os dias mais na minha moradia do que na rua, falta-me movimento e sobram-me pernas. As minhas pernas já não atendem mais aos comandos do meu cérebro com tanta eficácia, por isto, fico em casa lendo, escrevendo, rememorando o passado e refletindo sobre o futuro que não mais me pertence.
Não sou um velho preguiçoso, porém, o mal da velhice afora às doenças da decadência da matéria, é o seu isolamento, é o seu alijamento pouco e pouco da comunidade e das decisões sociais.
Os jovens não têm tempo e nem disponibilidade para ouvir a sabedoria dos velhos e o seu conhecimento, então, resolvi ficar em meu canto, chorando os meus prantos, com os meus bichos.
São três animais de relações estranhas no dia-a-dia, porém consegui que eles convivessem comigo durante algum tempo, muito tempo, civilizadamente, se civilizado é o termo certo para falar da gata Fanny, do rato Camus e da baratinha Mina. Não pense o leitor que são esses os seus nomes verdadeiros, bicho não tem registro em cartório, o homem é que tem registro em cartório, CPF e RG, o homem é cadastrado e numerado do nascimento à morte, é muito complicado ser homem.
Fanny já convivia comigo há uns quatro anos. Uma gatinha linda de pelo branco rajado de preto. Na carinha, a natureza tinha desenhado uma estrelinha, um pentágono de pontas irregulares no tamanho, parecia mais uma flor do que uma estrela. Eu, seu dono, tinha pela imagem a percepção duma estrela, os vizinhos negavam que fosse uma flor ou uma estrela:
-Isso não é flor nem estrela, é uma mancha preta com algumas pontas!
-Felipe, eu tenho a percepção duma estrela. Os olhos vêem o desejo do homem, eu enxergo ali uma estrela e ninguém irá dissuadir-me do contrário...
Camus tinha chegado depois. Um ratinho que não era grande nem pequeno, diria que era mais pequeno do que grande, diria que era menor do que médio. Não era um rato nojento, era um rato limpo, cor de mel, com umas barbatanas bonitas. Apareceu na minha sala sem ser chamado e desaparecia logo depois. No início pensei dá-lhe com o cabo da vassoura, mas uma briga entre ele e Fanny conteve-me.
Camus era ousado, valente, naquele dia, que Fanny deixou um resto de comida em seu prato, Camus que estava com o estômago da necessidade, apareceu e papou a sobra.
Fanny quis papá-lo, mas ele se armou, fungou, rosnou, gritou e convenceu Fanny deixá-lo em paz, desse dia em diante não se tornaram amigos, porém, se toleravam, se respeitavam.
Camus aparecia todos os dias para comer o que sobrava e ela gostava...
Acho que atraída pela comida de Fanny e Camus que, agora, sobrava para ambos, surgiu Mina, uma baratinha que subia no prato e beliscava o resto do repasto.
Não foi fácil sua aceitação, tive que interceder com Fanny:
-Fanny, já que aceitou Camus, seu inimigo natural, deixe Mina em paz!!! – ralhei.

Terça-feira 2. Os ânimos já estavam contidos. Eu comia primeiro, Fanny comia depois, surgiam do nada, Camus e Mina. Mina sempre era a última.
Reforcei o prato de Fanny deste dia em diante, pois a comida dava para os três animais.
Observei que pareciam sussurrar com chiados de asas, grunhidos, rosnados, que no início eram imperceptíveis, mas pouco e pouco, tornavam-se perceptíveis e audíveis e convenceram-me de uma discussão, de uma conversa, de uma conversa que eu não entendia dos meus estranhos e insólitos protegidos.
Impotente diante do absurdo, do anormal, deitei-me numa velha espreguiçadeira reservada às minhas sestas e comecei cochilar e receber ondas e sinais cerebrais que traduziam com perfeição o que os estranhos moradores do meu apartamento estavam falando e discutindo...
Quarta-feira 3. O rato Camus se arvorava dos seus conhecimentos, de sua malandragem, de sua ligeireza em conseguir alimento e gabava-se dos petiscos frescos que comia. Água e alimento bons eram imprescindíveis, não comia carniça, gostava de queijo suíço, panetone, requeijão, fubá de milho e outras iguarias. Fanny olhava-o de soslaio e desconfiada. Se não fosse o Manduca, já teria feito do camundongo uma boa refeição.
Não entendia porque o dono da casa ainda não tinha expulsado o malandro de tanta parolagem. Mina ficava na sua, de quando em vez batia as asas discordando do discurso gabola de Camus, porém, o golpe final foi dado por Fanny, quando disse ao Camus o que ele não queria ouvir:
-Sua parolagem não me convence. O seu conhecimento é usado na ladroagem do homem! – disse-lhe com dureza Fanny.
-Ah, ah, ah, ah... olhe quem fala? Uma gata de gatuno, de ladrão!... Sua raça não faz outra coisa, senão roubar na calada da noite ou nos caçar, você é uma exceção, tem esse velho bobo que enche o seu rabo de comida e você só faz se espichar e dormir na poltrona o tempo todo, está balofa de preguiça!... – argumentou Camus.
-Embora não queira, tenho de concordar com você em algumas coisas: estou preguiçosa, no bem-bom. Manduca não é bobo, ele me ama, tenho tudo que quero e mais que preciso, não tenho necessidade de caçar ratos asquerosos pra comer. – Fanny justificou e acrescentou:
-Há 4000 anos a.C., o homem já me usava para lhe dar cabo! Pois vocês empesteavam as cidades e os campos. Éramos considerados deuses e já vivíamos nos palácios...
-Ainda jacta-se do seu conhecimento predador e assassino? Qual foi sua contribuição pra natureza?... – Fanny não lhe deixou continuar:
-Nós, gatos, não somos predadores, não precisamos de sua raça para sobreviver. Gostamos do seu petisco e estamos contribuindo com o homem com a dizimação de sua espécie. Vocês espalham doenças e prejuízo na natureza!...
-Quem é que contribui para o desenvolvimento da ciência? Nós, os ratos, somos as principais cobaias dos laboratórios mundiais. Somos os mais argutos, os mais inteligentes dos animais e de comportamento confiável.
-Vocês são nojentos, asquerosos, por isso o homem utiliza-lhes mais, pois numa escala de 0 a 10 de seres necessários à natureza, sua raça não obteria 2. – Mina não se conteve:
-Vocês ficam aí discutindo para saber quem tem mais conhecimento e se esquecem de mim. Nós temos mais de 400 milhões de anos na face da terra. A nossa memória tem registro de todas as civilizações. Em muitos países somos seres especiais e sagrados. Aqui, eu que posso vangloriar-me, pois sou mais velha do que vocês, milhões de anos!...
Quinta-feira 4. Camus rendeu-se aos argumentos de Fanny e Mina em relação ao conhecimento. Porém, continuava se achando o mais inteligente. .
Não é fácil medir a inteligência, se para medir a inteligência do homem, ele usa de vários rótulos: abstrata, emocional, social, política e por aí afora, imagine o leitor, medir a inteligência dos animais tidos como irracionais.
Todavia, dadas às evidências, Fanny e Mina não teriam argumentos para negar que Camus dentre os amimais citadinos, era o mais arguto, o mais picareta, o mais astuto, o mais inteligente e o mais sabido, mas lhe fizeram restrições, não deram o braço a torcer:
-Não é mais sabido que nós, você é o mais picareta, o mais ladrão, é quem mais usa a Lei de Gerson. Se sabedoria for esperteza, dentre nós quatro (incluiu-me), você é o mais sabido – observou Fanny e Mina acrescentou:
-Sabedoria do mal!...
Sexta-feira 5. Os vagabundos comeram e se mandaram. Fanny tinha um namoro com o gato Félix, estava toda sirigaita, nem se espichou no sofá, desapareceu, foi se embelezar, tomar o seu banho. Fanny gostava de tomar banho, eu enchia-lhe de talco...
Camus alegou que ia ver sua amada Camila, uma safada ratinha, que não lhe deixava em paz nos finais de semana e enchia-lhe de cornos noutros dias.
Mina não deixou por menos, foi ao encontro do seu musculoso baratão!...
Sábado 6. Os notívagos estavam de ressaca, dormiram o dia todo, à noite, fizeram uma reforçada refeição e voltaram para suas camas.
Domingo 7. Todos estavam apostos para refeição. Depois que se empanturraram e comeram como se fosse a última refeição, Camus começou tagarelar e ufanar-se da lixa que tinha dado em Camila, duramente reprovado por Fanny e Mina:
-É próprio do mau caráter!
-Estou falando a verdade. Dei um trato na minha nega que tão cedo, ela não me esquecerá!... – brincou Camus.
-Não se conta o que se passa entre um casal, não é ético, entretanto, não se pode exigir isso de você! – disse-lhe Fanny.
-Você se acha a rainha da cocada preta, a gata mais honesta do mundo, deixe o velho bobo distrair-se que você dará o bagaço! – admoestou-lhe Camus.
-Eu como para viver. Você vive para comer e destruir o homem, eu dou-lhe carinho e amor!...
-Claro minha filha, você sempre teve casa, comida e chamego, nós, temos pau nas costas, experiências dolorosas em laboratórios e venenos exterminadores, se a natureza não nos fosse pródiga na fecundação, já teríamos desaparecidos, como outros animais! – Mina concordou:
-Eu sou obrigada concordar com o amigo rato, o homem só quer nos destruir e usa os métodos mais dolorosos!
-Mas, vocês só espalham doenças e destruição. Eu dou-lhe afeto e solidariedade.
-A natureza nos dotou de recursos de autodefesa, assim como o gato come o rato, o sapo engole os insetos, a cobra engole o sapo, a baleia come o homem e os animais menores, nós espalhamos leptospirose e hantavírus para que o homem nos deixe em paz!... - Mina assentiu às palavras de Camus e acrescentou:
-Cada um presta do seu jeito. A minha raça é solidária com o homem na morte: espalhamos vermes, protozoários, bactérias que consomem os seus restos em pouco tempo. Já pensou a tristeza de sua alma olhá-lo e vê-lo carniça sempre? É a nossa maneira solidária!... – Camus bateu palmas de entusiasmo:
-Concordo Mana, o homem é a carniça mais fedorenta, se o seu corpo não fosse invadido por esses milhões de bichinhos destruidores, os narizes da cidade não resistiriam ao fedor!... - Fanny subiu nos saltos:
-Ahn!... Vocês se acham os beneméritos da Humanidade?...
-Não, não somos beneméritos, mas somos menos nocivos do que o homem, ele nos destrói e destrói o seu semelhante, nós não destruímos os nossos semelhantes... – Mina comungou com Camus.
-Vocês propõem o quê? – desta vez foi Mina que respondeu:
-Quem sou eu, quem somos nós e quem são eles para mudar a ordem do Universo? Somos as criaturas de Deus, o Universo não precisa de mudança, suas leis são perfeitas, nós, é que ainda não aprendemos o princípio da coexistência pacífica, pois, o fim último, o fim do fim, a morte, é certa para mim, para Fanny, para Camus e para Manduca!...
Houve mais algumas conversas, mas decrépito pela idade, não escrevinhei tudo no papel, mas quero lhe assegurar leitor, que eles fizeram as pazes e Mina pulou nas costas de Camus e Camus nas costas de Fanny e partiram...
Foi a última vez que os vi.

Autor: Rilvan Batista de Santana
Academia de Letras de Itabuna - ALITA





























 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 12/08/2012


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