Textos


Pedrinho

Pedrinho
R. Santana


A maioria das histórias da carochinha, o moleque peralta chama-se Joãozinho. Não vou lhe contar uma história da carochinha, mas uma história verdadeira, ocorrida nos bons tempos do curso científico, o antigo colegial. Porém, o peralta desta história é Pedrinho. Moleque pela idade, mas de uma argúcia e uma inteligência incomuns, naquela época, ele não passava dos 15 anos. Pedrinho era o mais novo da turma, entrou na universidade ainda imberbe.
Não era o mais bonito mas ganhava todas garotas que cruzavam seu caminho. Acredito que era pelo seu bom humor, seu jeito irresponsável e ingênuo. Não urdia nenhuma maldade, seu negócio era pregar peças hilárias, levando todos ao riso, às vezes, a própria vitima de suas galhofas. Tinha uma aptidão inata para colocar apelido. Os apelidos que Pedrinho colocava nos professores e nos colegas, pegavam como visgo, lembro-me de alguns: “Macarrão 18”, “Pingüim”, “Chabu”, “Chuchu”, “Saborosa”... cada apelido estava relacionado ao estereótipo da pessoa, algum traço da personalidade ou outro detalhe da conduta que chamasse à atenção dos demais colegas e professores.

Chabu era uma professor de Física que passou umas três aulas para calcular 10 elevado à 7ª. Potência. Quando ele começava calcular, os alunos cientes de sua inaptidão matemática, cada um dava um palpite e o infeliz se enrolava todo. Com uma dor de barriga de mentirinha, se mandava para secretaria e lá ficava até o término da aula e aí ficávamos a ver navio com as fundamentais aulas de Física e o cálculo adiado para o outro dia, até que Pedrinho que era um craque em matemática deu um basta e solucionou o problema.
Professora Georgina era uma alma boa. Era uma coroa solteirona que continuava trabalhando por amor à profissão e aos alunos. Suas aulas de História eram recheadas de tiradas divertidas e curiosas sobre generais, imperadores, príncipes e estadistas. Era uma mulher avançada para o seu tempo:
-Vocês sabiam que todos Césares gostavam de homem? – Pedrinho tomou a defesa de Júlio:
-Julio César era macho, professora!...
-Machochô filho, aquilo era uma bichona gulosa. Seu séqüito era formado pelos mais fortes gladiadores que nas horas vagas, eles transformavam-no numa Cleópatra! - todos caíram na risada.
Não pense o leitor que suas aulas de História eram desprovidas de conteúdo teórico. Quando ela abordava um tema histórico, ela abordava o fato com as causas, as conseqüências, os efeitos econômicos, os aspectos religiosos e por aí a fora. Jamais fez uma prova decoreba, ou o aluno assimilava ou não respondia.
Professora Georgina não era uma professora, era mais do que isso, era uma educadora.

Leite (leite só no nome e na brancura dos dentes), diretor do colégio CEI e capitão da Polícia Militar da Bahia, era um negro forte e exigente. Era uma exigência autoritária. Embora fosse uma exigência com base em regras discutidas a priori com todos segmentos interessados, à aplicação dessas regras, excediam ao bom senso. Se um aluno cometesse uma falta grave ou fosse reprovado mais de uma vez, ele não concederia matrícula no ano subseqüente, seu lema era: “a escola foi feita para todos, porém, vamos priorizar os alunos que reconhecem seu valor”.
Entre os alunos, capitão Leite era tratado por “Mr. Coffee” (mais um feito de Pedrinho), embora tivesse uma fachada de lutador de sumô e fosse durão, Mr. Coffee não resistia à lábia de Pedrinho:

-Capitão Leite, o colégio não vai desfilar no dia 7 de setembro?
-Pedrinho, o problema é que tem poucos instrumentos e alguns danificados, além disso falta pouco mais de um mês. Não sei se daria tempo para arrumarmos tudo até lá.

-Se o Senhor me autorizar, irei formar um grupo e fazer uma campanha para recuperar e comprar mais instrumentos. Porém, é preciso que os professores de educação física sejam engajados. – Pedrinho era danado na brincadeira mas quando se tratava de coisa séria, ele se transformava. Sabia planejar, administrar, tinha boas idéias e gostava de ouvir novas sugestões.
Ele envolveu toda escola, do matutino ao noturno. Os pirralhos que eram relegados noutros desfiles por causa do tamanho e da série, foram os mais comprometidos e quando alguém argumentava, Pedrinho justificava: - é o sonho da maioria, ademais, eles se cotizaram com ajuda dos pais e compraram os instrumentos que faltavam. Teve uma mãe que em comissão visitou os principais empresários e conseguiu todo pleito reivindicado.

O desfile foi um sucesso. Na frente saiu um rapaz travestido de D. Pedro I, montado a cavalo de puro sangue (emprestado de um fazendeiro), empunhando a espada, gritando: “Independência ou Morte!...” e, atrás, um grande retrato a óleo de José Bonifácio, levado por duas lindas jovens. No meio das alas, a banda marcial tocando hinos alusivos à Independência do Brasil.
Cada ala caracterizava feito, tradição ou folclore. Havia a ala indígena, a ala de soldados com armas primitivas e uma ala de cartazes e tabuleiros de alimentos, representando as comidas e as bebidas da época. Para fechar as alas, foram acrescidas alas de simbologias mais populares, como as de capoeira, colheita do cacau e as indispensáveis baianas com suas vestimentas típicas.
O capitão Leite ia à frente, com sua farda de gala, parecendo um imperador africano sem a serpentina trasladada por escravos. Ia a pé, postura ereta e queixo pra cima, olhando no horizonte, de quando em vez, acenava com a cabeça para cumprimentar uma autoridade ou uma pessoa de sua intimidade. Ia orgulhoso de sua escola.

Passados os festejos, a rotina volta ao dia-a-dia da moçada. Pedrinho ficou de bola cheia. Ele não tinha recebido os louros do reconhecimento da direção, todavia, colegas e professores entenderam que se não fosse o denodo e o trabalho dele na organização, o desfile não teria tido tanto sucesso. Os mais velhos diziam que nunca tinham visto nada igual. Quando insistiam com Pedrinho que a direção foi omissa, ele respondia da boca pra fora:

-Foi um trabalho de equipe. Todos merecem os louros da vitória. A direção fez sua parte, reconheço que poderia ter feito muito mais. Para mim, se tivesse havido um prêmio, teria que ser dividido com cada mãe e cada pai. Eles foram os mais abnegados. Teve um pai que alugou um carro para ir e levar na fazenda, o cavalo montado por D.Pedro I. Outro doou sozinho dois instrumentos. Além disso, cada pai teve de fazer uma vestimenta nova para seu filho. Mister Coffee condicionou que ninguém desfilaria com farda velha e surrada.

-Senhores alunos, apresento-lhe o professor Heyde Muller. Ele é odontólogo e vai ficar conosco até o final do ano – falou o Jô Arbages, vice-diretor da escola. – De chofre, Pedrinho observou: - José, ele parece um camarão de vermelho – passamos chamá-lo de “Camarão”.
Professor Heyde era um homem de altura acima da média. Usava paletó e camisa listrada colorida. Um pouco descuidado no trajar. Um paletó azul desbotado, calça bege e camisa avermelhada, destoando do conjunto. Quando o professor Arbages deixou a sala, ele começou falar :

-Sou filho de Jaguaquara, formado pela Universidade Federal da Bahia. Acho que vou ficar pouco tempo aqui em Itabuna – tinha voz nasalada. Chegamos a comentar, eu e Pedrinho, “deve ser outro Chabu” – Ledo engano, depois da rápida apresentação, o professor Camarão dissertou sobre célula vegetal. O homem era um ás!... Passeava na Botânica, corria na Biologia, enveredava na Zoologia e brincava com a Química e a Física. Ficamos impressionados. Comentei com Pedrinho:

-O homem é cobra Pedrinho!
-Quebramos a cara em nosso juízo – admitiu Pedrinho.

Tudo que é bom dura pouco. Três meses depois o professor Heyde foi embora para o Sul do país ensinar em uma universidade federal. Soubemos depois que tinha feito um concurso, muito concorrido e passado com louvor.


Professor Arbages, tinha sido exonerado da vice-direção e retornado à sala de aula. Ensinava Matemática.Tinha sido nosso professor na 1ª.. Série do curso científico e voltava agora para concluir a terceira série.
Hoje, acho que o professor Arbages não dominava o conteúdo matemático com profundidade. Porém, era um mestre na organização e na didática. No primeiro dia de aula, ele dava todo conteúdo programático da série, a bibliografia e o mais assombroso, as datas a priori das provas, inclusive, os dias de revisão. Chovesse ou fizesse sol, suas datas eram intransferíveis, salvo por força de um imprevisto na escola ou pessoal. Se tivesse de fazer uma alteração a posteriori, ele o faria com enorme antecedência. Suas aulas eram esquematizadas em fichas, a maioria ensebadas pelo uso.
Certa feita, a turma encabeçada por Pedrinho, fez uma proposta ao professor Arbages:

-Professor, nós queremos falar com o senhor!
-À vontade Pedrinho...
-Professor, nós estamos no último ano. Todos aqui estão cônscios que se não estudarmos muito, não iremos passar no vestibular. Lá ninguém irá nos ajudar, cada um que cuide de si. Cada um é fiscal do outro, porque todos são concorrentes entre si. Por isto, gostaríamos de obter de todos professores uma ralação de confiança. O professor aplica a prova e nos deixa a sós. Ninguém irá colar, todos serão fiscalizados simultaneamente!...
-Pedrinho, é uma situação nova, tem que ser testada. Se vocês corresponderem à confiança dos professores, a mim em particular,eu aceito
A primeira prova foi de português, foi um sucesso. Um ajudou o outro mas na maior discrição. Tínhamos feito um acordo que só ajudaríamos o colega em pequenas dúvidas, todos teriam que estudar.
Todos estavam ansiosos em relação à prova de matemática. Arbages era um bicho-papão. No dia da prova ele aprontou uma pegadinha, se não fosse a perspicácia de Pedrinho todo mundo teria caído. Na hora de distribuir a prova, ele deixou cair “inadvertidamente” o gabarito.
-Colegas, pode ser uma cilada. Vamos confirmar esses resultados se forem verdadeiros, iremos usá-los com critério para não gerar o gérmen da desconfiança no professor.
Eram as respostas da prova. Porém, foram usadas alternando os erros e acertos de um pra outro que o professor Arbages não teve a menor desconfiança. Ademais a folha de gabarito foi deixada onde caiu e entregue ao professor no seu retorno.

Duas historinhas que ocorreram antes do término do ano letivo que não as esqueço: uma com a professora de Geografia e a outra com o capitão Leite.
A falta de reconhecimento do dia 7 de setembro do diretor da escola tinha mexido com os brios de Pedrinho. Embora ele dissesse que a organização do desfile tinha sido um trabalho de equipe, no fundo ele sabia que tinha sido o principal timoneiro. E cozinhou em banho-maria uma oportunidade para pregar um estratagema em Mr. Coffee. Essa oportunidade surgiu. Uma autoridade importante da Secretaria de Educação da Bahia, tinha agendado uma palestra sobre “As Perspectivas do Mercado de Trabalho”.
José Antônio, um dos nossos colegas, era eletricista prático. Era um aluno esforçado, mas tinha dificuldade de aprendizagem, Pedrinho que lhe ajudava nas tarefas da escola, às vezes, nas provas. José Antônio era seu amigo e devedor.

-José Antônio, quero lhe pedir um favor!

-Pedrinho, não me peça, ordene!...

-Então, vamos combinar em casa, depois das aulas. Eu você e José. Combinado? – Combinado! - respondemos simultaneamente.

Depois das aulas fomos para casa de Pedrinho. Era cedo ainda, menos das 22:00 h, fomos bem recebidos pelos pais dele. José Antônio era íntimo da casa, da cozinha à geladeira. Eu nunca tinha ido. Fomos levados para o seu quarto. Eu e José Antônio, estávamos ansiosos para saber as intenções de Pedrinho, deveria ser algo importante, ele estava muito cheio de salamaleque.

-Amanhã à noite, irá ter uma palestra no CEI. Gostaria de melar a festa do Leite!- falou Pedrinho.
-Como? –perguntei-lhe.
-Nosso engenheiro eletricista irá dar um jeito!...- apontou para José Antônio.
-Quê jeito? – perguntou José Antônio.
-Um black-out na escola. Já comprei o silêncio do porteiro e sua cumplicidade. Combinamos que vocês irão chegar mais cedo para armar o alçapão e na hora de levar o palestrante e os alunos para o auditório ou pouco depois, é só desarmá-lo e provocar àquela escuridão!...
-Qual a minha participação? – perguntei-lhe.
-Você vai assoviar se alguém da direção chegar para que José Antônio fique ciente. Nenhum aluno vai entrar antes de vocês.
-Pedrinho, isso pode dar expulsão!
-Não se preocupem, se algo der errado, estarei lá para assumir a culpa. Tenho pontos de sobra em todas matérias. Eles podem expulsar-me mas não podem me reprovar. Qualquer problema, tenho tio advogado, coloco-os na justiça e, se for reprovado, estou novo, irei concluir o científico numa escola particular. Somente o porteiro poderia abrir o bico, porém, acho difícil, dei-lhe dinheiro na presença de dois colegas a título de pagamento de uma velha dívida. Se ele der na língua, tudo será esclarecido e ele poderá perder o emprego. Lembrem-se também que sou menor - Pedrinho tinha pensado em todos os detalhes. – Conjeturei:

-Pedrinho, seus pais têm dinheiro, eles podem pagar uma escola particular. Se nós formos flagrados, iremos ter sérios problemas. Talvez tenhamos que deixar de estudar por um tempo. Além disso, qual é seu objetivo? Não estamos enxergando...
-Garanto-lhes que tudo está sob controle. Vocês não irão ser flagrados, exceto se o porteiro nos trair, todavia, acho improvável, ele seria o mais prejudicado. O meu objetivo é desmoralizar Leite. Ele foi o único que não reconheceu o nosso trabalho. Afora administrar a escola com mão-de-ferro, truculência, como numa academia militar. Todos estão desgostosos com sua administração. Os colegas estão esperando uma oportunidade para declarar: “fora Leite!!!”, se vocês não quiserem participar, não iremos fazer o repúdio, não estar aqui quem falou, tchau! – Antônio José bronqueou:

-José responde por si. Você é meu colega e meu irmão. Dê o diabo, estaremos juntos para o que der e vier. Se for expulso que se dane Leite e sua escola! – fiquei envergonhado e procurei consertar de imediato:

-Peço-lhes desculpas. Não falei por medo. Também, não gosto de Leite e de seus métodos ditatoriais. Porém, tenho medo do que possa acontecer com um prédio daquele às escuras e a balbúrdia que os alunos irão fazer.

- Ninguém sabe do nosso projeto de black-out, exceto o porteiro. Na escuridão, ele irá abrir os portões e deixar que a turba passe. Ficou acordado com o pessoal das outras salas que se houvesse uma oportunidade de protesto, seria dirigida ao Leite, que não haverá quebra-quebra, será uma manifestação pacífica – esclareceu Pedrinho.

Tudo ocorreu como Pedrinho tinha Planejado. O auditório estava repleto. Na mesa principal o assessor do governo, os vice-diretores, Leite e os professores convidados. Quando o serviço de som anunciou que sua excelência o doutor fulano de tal ia falar, a rede elétrica da escola começou pipocar com um curto-circuito generalizado que dentro de poucos segundos, tudo estava às escuras. Os silvos, os assovios, os gritos de “fora Leite”, de “ditador tupiniquim”, de “negro burro”, “capitão do mato”, “feitor do governo”., “bote esse negro na senzala”, “negro truculento” ... foram ouvidos por mais de 10 minutos. A balbúrdia foi generalizada. As professoras e alunas foram as primeiras a debandar. O assessor do governo foi levado às pressas para o carro e salvo das vaias.
O boicote não poderia ter sido melhor. Não houve agressão física. Com exceção de meia dúzia de lâmpadas e alguns metros de fio, o prejuízo material foi de somenos importância em relação à repercussão que a manifestação teve nos meios de comunicação e na comunidade. Leite foi exonerado alguns dias depois e nomeado um professor bem quisto por todos segmentos do CEI. Não houve retaliação e tudo foi creditado ao regime de opressão imprimido por Leite na condução da escola. Para os psicólogos de plantão, que estudam as reações das massas, foi uma maneira que os alunos encontraram para extravasar as frustrações e os sentimentos de ódio contidos.
A escola ficou leve e solta sem ser transformada num território sem lei e sem ordem. Tudo ocorria dentro dos limites do regimento, todavia, as brincadeiras e as artes próprias do espírito jovem, não eram mais consideradas como faltas de suspensão e expulsão.
Ao apagar das luzes do nosso último ano letivo, a sala contígua fez uma brincadeira com a professora de Geografia. Ela ouvia parcialmente, às vezes, tínhamos que conversar acima do normal quando lhe íamos falar. Porém, era craque na leitura labial, se o incauto aluno fosse lhe dizer qualquer gracejo, teria que lhe dizer de modo que ela não tivesse a percepção dos seus lábios, senão, estaria fadado ir para sala de Orientação Pedagógica, que era mais uma sala de reprimendas e ameaças do que um serviço de orientação, principalmente, na direção do Leite.
Professora Helena ainda não tinha marcado sua prova final de geografia. A turma não estava nem aí!... Todos estavam passados por média. Sua deficiência auditiva dificultava-lhe conter o recurso da pesca dos alunos, por outro lado, ela não era ranzinza e enjoada, alguns entreveros, entre ela e os alunos, decorreram por excesso de abuso do alunado.
Quando a professora Helena chegou na sala, a encontrou vazia. Os alunos tinham lhe deixado uma charada na lousa: “Tu és pecadora, porém, tu lembras uma ilha no oceano Atlântico a sudoeste da África e a morte do imperador, 2 e 3”, e acrescentava que o retorno da turma estaria condicionado à resposta do enigma.
Ela pacientemente, desenhou um burro feio e orelhudo, com o recado:

“Diga aos seus colegas orelhudos que a ilha de Santa Helena foi o degredo de Napoleão e o tema da nossa prova amanhã. Helena”.

Pedrinho completa a contenda entre os alunos e a professora:

-José, você que tem mania de escrever, coloque em seu caderno: “um bom professor transforma um animal frágil e delicado em um ser humano; um mau professor transforma um ser humano em um animal sórdido e destrutivo”.

Autor: Rilvan Batista de Santana




















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Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 09/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr