Textos


Priscila

Priscila
R. Santana




I



Um tufãozinho foi o bastante para que a vela se desprendesse do pequeno pires e saísse rolando em cima da cômoda de quatro gavetas abarrotadas de roupa, pingando fogo em cima da toalha plástica que a cobria e ficasse presa num frasco de perfume, esparramando e queimando o espermacete.
A combustão do plástico e do espermacete, em poucos minutos, abriu um buraco na cômoda, puxando a vela para cima da roupa da primeira gaveta.
O fogo pouco e pouco começava formar labareda e subir uma pequena fumaça das roupas de nylon de Mônica. A fumaça, inicialmente, não se espalhou pelo quarto, subia em direção ao forro de PVC.
A pequenina Ana Paula, dormia com a inocência de um anjo na cama de sua mãe, enquanto Priscila, uma robusta rottweiler, se escornava em um tapete estendido na cerâmica, na cabeceira mais baixa do móvel.
Mônica não arredava o hábito de todas as noites, antes de sair para trabalhar, rezar com os joelhos afundados em uma almofada, defronte à cômoda (em cima, uma imagem de Santo Expedito), pedindo ao Santo, padroeiro das causas justas e urgentes, que lhe protegesse e colocasse sob a proteção de sua palma, sua família em particular, agora, Ana Paula e Priscila, mas assustou-se quanto lhe veio à mente o nome do animal: “Priscila? Será que estou pecando, meu Deus?!” Susto desfeito quando se lembrou que o seu Santo protetor tinha sido um soldado romano e antes da sua conversão, ele tinha usado a fidelidade, a bravura e a robustez do rottweiler para perseguir e guardar-se do inimigo, assim como faziam os pastores dos Alpes, para sua proteção e a guarda dos seus rebanhos.
A fumaça tomava corpo, as labaredas já alcançavam uns 20 cm, não demoraria as chamas passarem para segunda prateleira e atingir às demais, chegar até à cama, fumaça e fogo sufocassem e tostassem a criança e o animal.
Priscila percebeu a inquietação da criança, ela também começava inquietar-se, embora o fogo ainda estivesse distante, a fumaça começava incomodar suas narinas, decerto, o nariz sensível da pequena Paulinha de oito meses de vida começava irritar-se.
O fogo e a fumaça engrossavam!...
II


Mônica Angel Sá não se sentia diminuída, humilhada, por ser garota de programa, também, não fazia marketing do seu jovem e belo corpo. Há dois anos que tinha deixado de trabalhar numa grande construtora de imóveis residenciais em decorrência do seu envolvimento amoroso com um dos seus diretores, mas antes de ser despedida, arrancou-lhe uma bela soma de indenização trabalhista, sua casa e o reconhecimento paterno de sua filha em juízo e não auferiu mais recursos, sensibilizada com os pedidos dramáticos do seu ex-chefe e amante para que não estragasse o seu casamento e não o arruinasse na empresa.
Embora ela fosse meticulosa e discreta, todos os seus vizinhos sabiam ou imaginavam que sua atividade à noite não se restringia somente aos estudos (depois da faculdade, os motéis, os flats ou os hotéis rotativos), porém, sua simpatia, o seu carisma e os seus préstimos suplantavam qualquer resquício de preconceito e desconforto que alguém da vizinhança quisesse levantar.
Depois do parto de Ana Paula, manteve-se fiel aos cuidados maternos por uns seis meses, todavia, o jeitinho é filho da necessidade, as contas chegando, a pensão alimentícia insuficiente, ela arranjou uma moleca, mais menina que mulher, para tomar conta de Ana Paula, enquanto fazia do prazer o seu ofício, mais às tardes do que à noite.
.


III


O seu celular registrava três chamadas perdidas de André. Mônica resistia no retorno das suas ligações, o seu coração lhe pedia para retorná-las, sua mente dizia não.
Sentia-se bem com André, gostava de sua companhia e do seu sexo, tinham quase a mesma idade, ambos jovens, um homem rico e um perfeito cavalheiro, mas trazia na mão esquerda o estigma de uma aliança, ela sentia medo, já tinha exorcizado os traumas sofridos com o pai de sua filha, ressuscitá-los, seria mais uma experiência dolorosa.
O seu coração e o seu corpo se renderam quando André ligou pela enésima vez:
-Não quer falar comigo?...
-Claro, quero!...
-Passei a tarde lhe ligando!
-O celular estava descarregado...
-Quero lhe ver!
-Hoje, não! – valorizou-se.
-Posso saber por quê?
-Estou péssima e a menina não veio trabalhar!
-São19 horas, daqui a pouco estarei aí, telefona pra moça! – ordenou.
A moça faltou. A razão perdeu para emoção, André não teve muito trabalho para lhe convencer da exigüidade do tempo:
-Amor, não vamos demorar, Paulinha está afogada no sono, deixe Priscila cuidando de sua segurança!...


IV


Às 22 horas, a fumaça já era visível, o fogo cuspia labaredas pelo telhado da casa, os curiosos já tomavam conta da rua e da calçada de Mônica quando o carro dos bombeiros chegou. Uma vizinha no meio do povo gritava histérica para que os bombeiros adentrassem rápido na casa e salvassem a criança. O pedido dela ligou todos os comandos, enquanto alguns homens disparavam jatos de água sobre o foco do fogo, outros vasculhavam a casa em busca da criança e nada de encontrá-la...
Concomitante, André e Mônica dispararam no meio do povo. Mônica tresloucada gritava pela filha, foi contida pelos soldados do fogo:
-Os nossos homens estão cuidando de sua filha!!!
-Que é de minha filha?! – gritava.
-Paciência!...
O fogo foi completamente debelado, o incêndio ainda não havia se espalhado pela casa, ficou restrito ao quarto da dona da casa.
A cama, o colchão, o berço e a cômoda ficaram completamente carbonizados, o fogo, também, deixou um enorme buraco no forro se não tivesse sido feito pelo sinistro incidente, o quadro de estrelas que surgiu no céu através dele, era gostoso de ver.
Quando os três bombeiros reapareceram na porta da casa, traziam um semblante de decepção. Um deles trazia nas mãos, uma boneca chamuscada e retorcida, a única coisa que encontrara de Paula. Ninguém dizia nada, mas todos cobravam com os olhos e gestos o paradeiro da criança, quando Mônica se desvencilha dos soldados e corre gritando:
-Que é de minha filha???... – então:
-Priscila!!!...




V


André estranhou naquele dia o comportamento frio da amante. Ela, além de uma linda mulher, tinha fogo no rabo, nos seus 30 anos de vida, jamais encontrou outra igual nem semelhante na cama, o seu sexo era feito com grunhidos e gemidos, um animal no cio, uma experta do sexo, uma profissional do prazer, mas naquele dia, ela limitou-se ao feijão com arroz e ao papai-mamãe com muita dificuldade, ele não se conteve:
-Amor, eu estou triste...
-Foi o quê?
-Fui egoísta insistindo que você fizesse amor! – desabafou André.
-Não, eu também estava a fim, bobo!...
-Não! – completou:
-Você é folgada, desprendida, sem pruridos, hoje, não lhe reconheci!
-Coisas de mulher, a minha menstruação está perto de vir, além disto, hoje, acordei com um pressentimento que algo ruim vai me acontecer! – Justificou.
-Isso é bobagem! Não sou supersticioso...
-Sou devota de Santo Expedito, ele me protege, diuturnamente, com sua palma e sua cruz e quando algo ruim está para me acontecer, ele me avisa, com esses maus pressentimentos!...
-Coincidência, amor!
-Sinais de verdade seu herege!... – brincou.

VI


Ana Paula foi apresentada à Priscila nos primeiros dias de nascida, três quatro meses depois, Mônica já a escanchava no seu lombo e brincava pela casa. O animal parecia gostar e comportava-se com doçura e delicadeza.
Não era criada amarrada ou marginalizada no quintal. Embora, ela possuísse sua casa no fundo do quintal coberta de telha de amianto e piso de cerâmica, a usava quando lhe dava na telha ou quando sua dona lhe exigia. Corrente, somente, quando Mônica saía com ela para suas caminhadas.
Deus tem um propósito para cada uma de suas criaturas, mesmo na dor e no sofrimento há uma razão de ser, o homem ainda não alcançou o mistério da vida e sua eternidade é uma interrogação.
O esquecimento de Mônica em travar o ferrolho da porta do fundo de sua casa, naquela noite, foi um sinal de Deus, pois à medida que a fumaça ia deixando o quarto irrespirável, a porta aberta tornou o sinistro menor e serviu de exemplo para mostrar ao homem a presença do Criador.
Assim que as labaredas começaram subir e a fumaça engrossar, Paulinha inquietava-se afundada sobre os lençóis e colchas, começou choramingar, Priscila pulou na cama...



VII


Mônica partiu porta adentro seguida pelos bombeiros, desesperou-se quando viu o seu quarto esfumaçado e o que restou dos móveis, carbonizado. Nenhum sinal de Priscila e Paula. Sua cabeça doía, suas vistas turvaram, sem rumo, partiu para outros cômodos (três quartos, dois sanitários, sala, cozinha e quintal) da casa, debalde esforços, quando num estalo, partiu porta fora, para o quintal, sempre gritando:

-Que é de minha filha???... – então:
-Priscila!!!
VIII


Amigo leitor, eu não herdei o talento de Dante Alighieri que descreveu com maestria, os cenários do céu, do paraíso e do inferno nem o dom dos pincéis de Leonardo da Vinci, Michelangelo, Van Gogh ou o nosso não menos talentoso argentino brasileiro, Hector Julio Paride Bernabó, o Carybé para descrever com exatidão, emoção, cores e cenário de Priscila e Ana Paula, deitadas no piso, na casa da cachorra, uma ao lado da outra num abraço aconchegante e distantes do mundo, quando Mônica e os soldados do fogo as encontraram.
Todos deram um freio de arrumação diante da casinha de Priscila. Mônica com riso nervoso, gritava:
- Santo Expedito!... Santo Expedito!... Santo Expedito!... Meu Deus!... Meu Deus!... Meu Deus!... – os bombeiros completavam:
-Milagre!!!...



Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: Conto (registrado)
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 08/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr