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O enigma

O enigma
R. Santana

I
Era um casal menos jovem e mais maduro. Ele beirando os 42 anos de idade, ela, na faixa dos 38 anos com aparência de 30. Ele, escravo dos prazeres da vida. Ela, escrava da beleza. Ambos errados e ambos certos na vida que levavam, mas separados por convicções íntimas e contrárias. Ele condenava sua vida de renúncia e sacrifício para prolongar o encontro com o nada . Ela condenava sua vida farta e fútil para chegar mais cedo ao nada.
José Roberto Sampaio e Helena Santos Sampaio, para os amigos e não amigos por JR e Lena. JR, branco, alto, forte, cabelos entremeados de fios brancos e empregado público. Lena, morena, altura mediana, magra, cabelos de cor indefinida, às vezes castanhos, pretos doutras vezes, loiro e cor de mel quando estavam na moda Se não tinham um casamento sonhado, sonhavam em manter-se casados. Aos trancos e barrancos, na falta e na fartura, na tristeza e na alegria, na doença e na saúde, eles já tinham quase duas décadas juntos, comendo o mesmo sal, com as escovas de dente no mesmo armário e dormindo na mesma cama, exceto, quando o bafo de bebida de JR era insuportável. Enfim, um modelo de casal encontrado em qualquer lugar do mundo.

II
Não tinham filhos. No início do casamento, Lena tivera algumas perdas a contragosto. Quando a gravidez começava, ainda no primeiro mês ou no segundo mês, por motivos banais, quando Lena menos esperava, descia uma enxurrada de sangue em suas pernas anunciando o aborto involuntário. Tinha feito vários tratamentos, pensou até fazer uma inseminação artificial, mas desistiu diante dos custos, considerando também que naquele tempo o processo de inseminação artificial, do bebê de proveta, estava em fase incipiente mesmo em alguns centros médicos especializados.
JR e Lena começaram racionalizar: se Deus não lhes dera um filho é que o filho não seria a solução, mas parte dum problema existencial. Os anos foram passando, outros problemas exigindo solução e o desejo e o capricho foram esquecidos.
Ultimamente, ele só chegava a casa mais embriagado do que sóbrio. Depois do trabalho, ele e mais alguns colegas, sentavam-se no bar mais próximo, depois de alguns copos de cerveja ou de duas ou três talagadas de cachaça, conhaque ou whisky, estavam prontos para discutir e solucionar os problemas do Brasil e do mundo.
As discussões entre JR e Lena, nessa época, ficaram mais acirradas e azedas. Ela o culpava da vida dissoluta e irresponsável, com colegas, mulheres e barzinhos, que ele estava levando. Ele a culpava de ser uma pavonácea, refém de cosméticos e cremes, perseguindo uma beleza e um tempo perdidos.

-Lena, nós somos as uvas preferidas de Deus... Você já observou o seu processo de envelhecimento? – Lena estava com vontade de mandá-lo pra cucuia, mas quando se falava em “velho”, “envelhecimento”, “envelhecer”... seu medo e seu complexo eram mais fortes do que sua lucidez.
-Não entendi seu pinguço!... Por quê somos as uvas preferidas de Deus? – Lena estava azeda. Se não fosse a curiosidade atiçada por JR em comparar uva com ser humano, não lhe daria nenhuma trela, ultimamente, deixava-o conversando sozinho na maioria das vezes.

-È fácil querida observar como as uvas envelhecem. Novas, são viçosas, verdes ou vermelhas, elas têm uma cor viva, uma membrana lisa, hidratada, delicada, empencada e feliz, a fruta mais bela que a natureza pintou. À medida que vai envelhecendo, vai murchando, perdendo o viço, escurecendo a cor, desidratando, textura enrugada, virando passas...
O homem é a uva preferida de Deus. Dotou-o de bom senso, sabedoria e inteligência, mas não lhe poupou do envelhecimento e da consciência da morte.
Também, à medida que envelhece vai perdendo o viço, murchando, perdendo a cor, desidratando e enrugando a pele, perdendo os músculos, morrendo por dentro, secando... – Lena estava absorvida com a veracidade da semelhança. Nunca tinha prestado atenção que o homem e a uva envelhecem murchando... Todavia, não iria lhe dar mão à palmatória:

-O homem tem recurso para retardar o envelhecimento não se pode comparar com uma uva!... – argumentou.

-Não adianta. Retarda, mascara, puxa daqui, estica acolá, mas se novo não morre, a velhice é conseqüência e, o desfecho é parecido. Por isto, alguém já disse que seria bom se todos morressem jovens e bonitos! – disse-lhe JR.

-A ciência evolui dia-a-dia, não duvido que o homem não progrida a ponto de encontrar um elixir da juventude e de longa vida, uma panacéia para todos os males...


III


Aquilo não estava certo, porém, o pecado carnal e a libido eram mais fortes. Pela segunda vez tinha tido àquela mulher nos braços. Não tinha havido nada além de uns beijos ardentes e apaixonados e se não fosse sua mãe barulhenta, teria chegado à hora H. Se não fosse sua mãe, desta vez, os seus instintos carnais e os dela teriam sido. consumados. Bafejado pela sorte, Neto ainda teve tempo de justificar a presença de D.Lena naquela manhã em sua casa e não ser flagrado:

-Mãe, dona Lena vai me dar banca de português... – adiantou Neto.
-Menino, qual dinheiro que tenho pra pagar banca?
-Não é preciso dona Josefa. Neto tem feito muitos mandados pra mim sem cobrar um níquel, além dele colocar em ordem as tralhas do meu quintal e limpar a minha garagem.- acudiu Lena.
-Não sabia que vocês eram tão amigos! Quê hora tu faz isso pra dona Lena, Neto?
-À tarde, mãe, quando não estou na escola e a senhora está no trabalho. – Realmente. Lena foi lhe pedindo um favor, depois mais outro, inclusive, com o assentimento do marido em que a coisa foi tomando corpo e compromisso.
Um toque aqui, outro acolá, um olhar indiscreto, um seio à mostra, uma coxa a descoberto, romperam a timidez e os escrúpulos morais de Neto e Lena passou ser a mulher dos seus sonhos eróticos. E, se não fosse sua mãe, naquela tarde, os seus sonhos teriam sido transformado em realidade pela cumplicidade de ambos.
Emanuel Augusto Neto era um adolescente com cara de adolescente de 16 anos de idade. Compleição e altura acima de sua faixa etária, um pouco mais baixo que JR. Filho único de dona Josefa, não tinha outra obrigação naquela idade a não ser estudar, cuidar da casa na ausência da mãe e jogar bola nos finais da tarde quase todos os dias.

IV

-Juca, rendo-me aos desígnios da natureza feminina. Por mais que eu pense não consigo desvendar a alma da mulher. A minha por exemplo, nesses três primeiros meses está tão diferente, tão compreensiva, amiga, bem melhor do que quando começamos namorar. – desabafou JR.
-JR, não existe nenhum enigma, nenhum mistério. Lena está mais madura, centrada, estar tendo consciência de sua importância em sua vida. Embora você tenha seus defeitos, é com você que ela se acha... - explicou o amigo de JR.
-Sei disso Juca, à medida que ficamos mais velho, os impulsos vão diminuindo, os desejos arrefecidos, a cabeça no lugar... Mas, nada disso ocorreu com Lena. Ela continua vaidosa, brigando com cada ruga, emperiquitada de manhã à noite, fogosa na cama, mas com um senso de humor e uma felicidade surpreendentes. Às vezes Juca, penso que é sua irmã gêmea que tomou o seu lugar com um temperamento e um caráter diferentes. Como ela não tem irmã gêmea, o mistério permanece...

V

O chamego tinha virado xodó. Era Lena lá e Neto cá, principalmente, quando o marido e a mãe não se encontravam. Os cochichos maledicentes dos vizinhos não eram mais segredos, como em toda situação parecida, o marido e os pais são os últimos a saber, às vezes, nunca sabem e ninguém tem coragem de meter a mão em cumbuca. Quando alguém aparece querendo denunciar, cônscio de estar prestando um grande feito, é logo admoestado:

-Seu Zeca se eu fosse o senhor diria ao seu JR essa safadeza!
-D. Nina, ainda bem que a senhora falou se, se... se eu fosse a senhora não me meteria nessa casa de marimbondo. Primeiro, porque não viu nada, não pode provar nada; segundo, o marido dela anda com o moleque pra cima e pra baixo como um filho que não teve; terceiro, entre o marido e a mulher não se mete a colher. Se for um corno manso, além de achar ruim, vai lhe chamar de fofoqueira e desocupada e se for um corno brabo, poderá dar cabo da mulher e do moleque. O melhor dona Nina, é que deixemos como estar pra ver como é que fica... – ninguém da rua falou mais do assunto.

VI
JR tinha chegado mais cedo naquele dia. Encontrou a mulher mais alegre do que pinto no lixo. Seu pressentimento é que se sua sogra viria passar uma temporada com a filha, não quis precipitar–se, deixou que as coisas acontecessem, sua prudência foi recompensada:
-Jota, querido, tenho uma coisa pra lhe falar! – anunciou Lena.
-Sou todo ouvido!...
-Eu quero lhe falar no quarto, depois que fizermos amor...
-Você está me deixando nervoso!... derreteu-se JR..
Depois de muito affair e JR tomar uns dois goles de whisky, Lena conta para seu esposo que estava com dois meses de grávida e não lhe tinha ainda falado por não ter certeza. Acreditava que fosse uma irregularidade menstrual, e a gravidez fosse como tantos outros rebates falsos. Somente com os exames médicos em mãos é que se encheu de coragem. Agora, estava lhe contando e que ele não propalasse aos amigos para não ocorrer como doutras vezes que a gestação gorava e era grande sua frustração e a dele.
A alegria de JR para os colegas foi contida, graças aos veementes apelos da mulher para que deixasse naturalmente a barriga anunciar-se. Quando tivesse com cinco ou seis meses de grávida, sua protuberância abdominal, naturalmente, chamaria à atenção dos colegas e conhecidos. Na sua idade, e sendo o primeiro, seria alvo de exclamações e admiração “tu estás grávida?”, “JR você é um danado!”, “enfim, uma boa descoberta!”, por isto, JR engoliu seco, deixou as coisas acontecerem, confiava na intuição da mulher.


VII


-Tu estás grávida? – perguntou Neto.
-Estou grávida. – respondeu-lhe Lena.
-JR já sabe?
-Sim! E, é todo alegria. Só fala nesse filho... – foi a última conversa de Lena e Neto.

VIII

Sobre à mesa, em sua repartição, JR encontrou mais uma vez uma carta fechada, com poucas palavras e nenhuma explicação: “quem faz filho na mulher dos outros, perde o filho e o feitio”. Um enigma. Parecia mais uma charada do que uma denúncia. Era a terceira vez que chegava ao seu local de trabalho, uma missiva lhe endereçada. No início pensou que fosse alguma brincadeira de mal gosto de algum colega. Porém, depois de muita pergunta e especulação, concluiu que não era arte de nenhum colega. Além disto, ninguém em seu trabalho sabia da gravidez de Lena. Se Lena não estivesse grávida, teria dado menos importância àquela lúgubre mensagem e jogado-a no lixo. Mas o diabo da mulher apareceu grávida de um momento pra outro, depois de tantos anos e tantas perdas...
Ultimamente, andava triste, soturno e macambúzio. Tinha deixado até de ir tomar às saídas do trabalho, um trago com os colegas. O pessoal da repartição estava preocupado e sem condições de ajudá-lo, pois ele não se abria, por mais que eles perguntassem. Desculpava-se que não estava bem de saúde e não queria que a mulher soubesse. Um dos colegas ainda ousou-se:
-JR é nessa hora que a mulher tem que participar. Ela não respondeu: “... na saúde e na doença, na alegria e na dor...”, quando o padre fez o casamento? – JR terminava achando graça.
-Flávio você é um pilantra. Eu preocupado e você com os sacramentos do padre!... Faz tanto tempo que nem me lembro o quê respondi e muito menos as juras de Lena. Tem coisa Flávio, que a cumplicidade dói, é melhor que cada um carregue seu fardo. – assim, JR encerra o seu drama íntimo e impede que as especulações prosperem.

IX

Sete meses. Não era mais possível Lena esconder a barriga e não era necessário. Teve uma certa apreensão inicial em decorrência da idade. Suas colegas ficavam galhofando dela e do marido:

-Ah!!!... Agora que esses dois abriram o bico quando não mais tinham como esconder hein?... Você, JR, estava preocupado era com isso? Com um filho?... – era o tempo todo gozação dos colegas e amigos.

Lena já não mais tinha sossego. Fazia uma camisinha hoje, uma toca amanhã, uns sapatinhos de crochê depois... não parava a máquina de costura. Quando sobrava um dinheirinho extra, completava o enxoval com vestuário pronto das lojas.
Tinha se acostumado à rabugice do marido, seu enfezamento inexplicável, atribuía ao fato dele ser pai depois dos 40 anos de vida. Às vezes, ele estava feliz, fazendo planos para chegada do rebento, de outras vezes, se fechava em seu mundo e suas respostas eram monossilábicas, quando se dava ao trabalho de respondê-las.


X

Naquele dia JR tinha acordado bem humorado. À noite, tinha feito amor, tomando todos os cuidados e posições para não ser um estorvo na barriga da mulher. Tinha-lhe levado café na cama e impediu-lhe que saísse dela:

-Descanse querida, basta o prazer que você me proporcionou toda noite. Se prepare hoje, quero repetir a façanha de ontem, agora que deixei de extravagâncias, estou doando testosterona!... - brincou ele.

Existem pessoas que não nasceram pra ser feliz. Se o infortúnio e as desventuras as perseguem seus sensores e desconfiômetros ficam alertados a maior parte do tempo. Se tudo lhe vai bem na vida, algo interior diz-lhe que não existe tempo bom que não se acabe e JR nunca soube lidar com isso.
Logo naquele dia de céu limpo e azulado sem prenúncio de chuvisco, chuva, muito menos tempestade, que ao sair de casa, por debaixo da porta, alguém jogou um diabinho de um papel, jeitosamente dobrado em quadro com o seguinte veneno: “corno manso é pior do que corno de goteira; o primeiro, o marido deixa o lugar para o amante; o segundo, o amante deixa o lugar para o marido”.
A cabeça de JR entrou em parafuso. Passou o dia planejando matar a mulher e o amante. Mas, quem era o amante? Todos os seus suspeitos eram amigos comuns além de serem (segundo sua avaliação), incapazes de tal vilania e traição. Seria Neto o amante dela? Mas, Neto não passava de um adolescente crescido, com menos idade do que o primeiro filho perdido de Lena, além dele ser considerado um filho que ainda não tinham tido.

XI

À noite, daquele dia, amou-a como nunca. Estava sedento de sexo. Fez sexo na cama, na cozinha, no banheiro, no sofá... Lena estava perplexa com o novo homem. Tinha-lhe deixado cansada e saciada. Há anos que seu marido não tinha um desempenho daquele. Quê estaria acontecendo? Não quis respostas, ambos cansados e saciados, deitou-se e dormiu.
Pela manhã, cedo ainda, não o encontrou deitado ao seu lado como era costume. Pensou que estivesse preparando o seu café. Naqueles dias de gravidez e nos primeiros anos de casados, ele tinha-lhe deixado mal acostumada com o café na cama. À medida que o tempo passava, algo estranho começou crescer dentro de si. Pensou de início que o marido estava na cozinha fazendo o café, porém, o silêncio negava-lhe esse sentimento, depois, pensou que ele tivesse saído para o trabalho. Resolveu, da cama, chamá-lo:
-Amor!!!... – nenhuma viva alma. Não resistindo esperá-lo, levantou-se.

Quase desmaia de susto. Saiu gritando chamando os vizinhos que pela curiosidade e pelo seu estado interessante, todos acudiram-na. Lá estava estirado no sofá, José Roberto Sampaio, funcionário público federal, 44 anos, amigo dos prazeres da vida e fraco de espírito, morto por um tiro no peito, com o revólver crispado nos dedos e numa escrivaninha próxima, todas as cartas recebidas e um bilhete que dizia:

“Prefiro conceder-lhe o benefício da dúvida : in dubio pro reu”

JR


Autor: Rilvan Batista de Santana

Gênero: conto









 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 07/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr