Textos

Dona Nancy

R. Santana
 
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Não a chamávamos “professora”, era dona Nancy pra lá, dona Nancy pra cá. Dona Nancy era a professora da escola primária Sagrada Família, um misto de escola e residência. Dona Nancy, uma descendente de negro que rejeitava essa condição com o alisamento cuidadoso do cabelo ou o uso de uma peruca de cabelo liso e a escolha de um sarará pra marido. Os filhos, dois puxaram ao pai na cor e os outros dois à mãe. Usando o eufemismo tradicional, dir-se-ia que Nancy era uma negra de alma branca. Corpulenta e atarracada, ensinava e dirigia a Escola Sagrada Família tão bem que os moradores mais afortunados do Banco Raso e adjacências disputavam vagas para seus filhos. Não conhecia Paulo Freire nem Anísio Teixeira, nem Lauro de Oliveira nem Piaget, nem Vygotsky, nem Wallon, enfim, nenhum revolucionário da didática e da educação, porém, o seu feijão - com - arroz era dado com dedicação e competência, ou melhor, seriedade e cobrança que a molecada saía direto para o ginásio passando pelas terríveis provas seletivas de admissão com louvor. Conhecia bem o português, a geografia, a história, a ciência e aritmética. Tinha uma caligrafia de encher os olhos, por mais que a molecada enchesse páginas de manuais de caligrafia nunca chegava imitá-la. Herdara dos seus pais e avós a metodologia e a didática. O moleque recebia todos os dias, uma quantidade enorme de atividades escolares de disciplinas alternadas que o seu aluno teria que dar conta no dia seguinte e ai daquele que não fizesse suas obrigações escolares, o castigo ia desde a reguada ou mandá-lo de volta aos pais que sua psicologia, sua escola nova, sua pedagogia de Lauro de Freitas, eram um reio de couro cru e uma palmatória de jacarandá com um furinho no meio. Não quero que o leitor me pergunte a ciência desse furinho no centro da palmatória, não lhe saberia explicar, sei que havia uma crença que se colocasse um piolho no meio do furinho, com o tempo, a palmatória se partia em duas... A sabatina de tabuada não podia faltar. Dona Nancy, aos sábados, colocava os alunos em círculo e começava sabatinar todas as lições dadas durante a semana. O aluno que soubesse dava bolo naquele aluno que não respondia à pergunta da professora. Todos eram ciosos do conhecimento pelo prazer ou pela palmatória, não se cultivava a negligência, todos sem exceção, eram potencialmente sábios do seu saber.
 
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O leitor de hoje, que ler estas páginas, poderá tirar conclusões erradas dessa educação autoritária, mas quero lhe apaziguar o ânimo, dizendo que afora o autoritarismo, às vezes, exagerado, os alunos daquela época possuíam uma consciência cidadã e uma boa formação intelectual e jactavam-se dos seus conhecimentos, muitos anos depois, das novas gerações. As datas cívicas e as tradições eram honradas e festejadas, principalmente, a festa junina, o natal, o 13 de maio, o 7 de setembro e o 15 de novembro. Na festa junina, dona Nancy envolvia toda família na arrumação e decoração da palhoça, na aquisição e armação da fogueira, na formação e ensaio das quadrilhas e na compra de traques, chuvinhas, rojões, pequenas bombas, foguetes, fogos de menor risco. Todos os alunos participavam do menorzinho ao maior, até os pais eram presença quase obrigatória tanto como partícipe e para ajudar na disciplina dos seus diabinhos. A professora pedia com antecedência aos pais, milho, amendoim, coco, leite, açúcar, canela, cravo, ovos, jenipapo, caju, uva, maça, ameixa, laranja, tamarindo e tantas outras frutas e outras especiarias e condimentos. No dia de São João, todos traziam somente a barriga e a disposição de brincar no forró até o dia amanhecer e tanto era a fartura de canjica, bolo de milho, bolo de arroz, pamonha, milho cozido, milho assado, arroz-doce, licores, que o dia de véspera era sucedido pelo dia de São João. O Sete de Setembro era a festa cívica maior. A Escola Sagrada Família descia à avenida com os seus garbosos alunos ao rufar dos tambores. As meninas integravam o pelotão das bandeiras com os seus trajes impecáveis como se estivessem fazendo aquilo pela última vez, tamanha era a dedicação. Era um grupo pequeno de uns cem estudantes da manhã e da tarde, mas que somado aos grupos doutras escolas, pareciam grandes contingentes militares, com trajes de época e algumas alegorias, conseguiam brotar nos assistentes os mais escondidos sentimentos patrióticos. Havia um ponto de saída e outro de chegada comum para todas as escolas, o ápice da festa ocorria quando o desfile atingia o palanque das autoridades que estrategicamente, ficava no meio do percurso. Dona Nancy, baixinha e gordinha, se colocava à frente do palanque das autoridades como uma generala de uma grande divisão.
 
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Mentira tem pernas curtas e o mal da mentira, é que tem de se continuar mentindo para justificar a mentira anterior. O mais raquítico dos alunos da 3ª. série e o menos brilhante, Milton Nery, não tinha pais, morava e trabalhava com um tio e dono de bar. Quando voltava para casa, no caminho, encontrou um tratorista negro, conhecido de sua família, terraplanando uma área de aproximadamente 2 hectares, onde seria construído o acampamento do extinto DNER. Moleque crescido, ele ficou olhando àquela montanha de cascalho e terra removida e fazendo ziguezague no lugar, na despedida, Milton Nery deu falta do seu lápis. Apavorado, por desencargo de consciência, comunicou ao negro a perda do seu precioso objeto: -Seu Ademário, eu perdi o meu lápis!... Falou por falar, estava convencido que jamais alguém iria achar um objeto tão pequeno no meio daqueles escombros de terra e tocos de árvores, muito menos se dar ao trabalho de levá-lo em sua casa. Mas foi isso que aconteceu: Ademário achou o lápis e ao invés de entregá-lo, entregou-o ao tio padrasto. Milton não tinha comunicado o sumiço do lápis ao rigoroso tio, preferiu pegar o dinheiro no caixa do bar e fazer a reposição. Dois ou três depois o tio chama-lhe na presença do negro e cobra-lhe o lápis: -Milton, que é de o lápis da escola? -Está na pasta! – foi lá, pegou-o na pasta e mostra-o ao tio. -E este (tinha-o escondido atrás das costas para flagrá-lo), que o seu Ademário achou? – a casa caiu!... Tudo foi esclarecido: acreditando que o lápis não seria encontrado, Milton usou o dinheiro do caixa sem pedi-lo para comprar outro lápis igual no grafite e na estamparia da madeira. Pego pelo brutamonte do tio que justificou sua sanha agressiva de uma dúzia de bolos de doer à alma de vergonha e as mãos por ter pegado uns centavos do seu dinheiro para repor um objeto perdido sem avisá-lo. Milton não o avisou porque sabia que o desfecho seria o mesmo. Doutra feita, esse infortunado aluno, num ensaio de desfile, levou um soco de um menino maior por cobrar-lhe mais atenção na marcha e não pisar-lhe o calcanhar. Milton Nery era um ser desafortunado órfão de pais vivos.
 
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Final de ano, todos ficavam na expectativa das provas finais, a tensão e a angústia eram enormes. Dona Nancy atrelava o conhecimento ao comportamento. Bom aluno no seu critério de avaliação não podia ser danado, traquino, teria que ser doce e subserviente e que o seu pai fosse generoso na hora de encher-lhe a burra para ajudar os festejos da escola. O aluno com o nariz pra cima, de caráter independente, que não dizia amém, que tinha consciência que estava sendo preterido por não ser filho de papai rico, comia no cabresto, suas conquistas eram frutos do seu esforço e não do beneplácito da mestra.
 
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Peço licença ao leitor para fazer um parêntesis e contar o segredo de Luiza, antes de continuar falando de sua mãe. Luiza não tinha herdado a inteligência, o caráter forte, nem a cor de dona Nancy. Era uma adolescente branca de cabelo gasto, parecida com o pai. Os olhos graúdos talvez, fossem os únicos genes herdados de dona Nancy. Não era uma deusa da beleza, uma rainha do milho, uma princesinha da cidade, mas era uma adolescente apetitosa, de altura mediana, de peitos empinados, quadris bem feitos, bumbum pronunciado e pernas torneadas. Era uma garota comportada e provida de bons sentimentos. Nutria uma paixão secreta por Milton Nery, o personagem carente desta história. Embora não fosse um jovem malhado de físico exuberante, era branco de verdade, de cabelos loiros escorridos, olhos verdes e rosto corado. E, dizem os sábios que os contrários se atraem, ele e Luíza se atraiam, se amassavam e se beijavam e se escondiam quando a oportunidade pintava.

 
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Segredo confessado. Faz-se justiça com dona Nancy esclarecer que ela não era uma bruxa malvada ou uma mercenária da educação, talvez, para sobreviver numa profissão que nunca foi valorizada pelo capital, ela tivesse de usar a diplomacia da bajulação com quem tivesse mais. Final de ano. Afora a tensão nervosa da meninada e dos pais, o final do ano letivo era uma festa. A sala cheia, a mestra abraçada por uns e beijada por outros, desfilava na sala como uma rainha que os seus súditos desejavam ouvi-la. Nesse dia, ela de cabelo feito, o rosto retocado de pintura, o melhor sapato e o melhor vestido, ela não era tão feia quanto lhe parecesse na labuta diária da sala de aula. Lembro-me que por deferência, Nancy concedia a fala de abertura ao Sr. Inspetor do ensino estadual, remota figura que não existe mais. O preclaro senhor fazia uma extensa preleção das novas leis e as novidades da educação, das virtudes profissionais da professora, da responsabilidade dos pais e do futuro promissor dos seus meninos crescidos: o homem era um xarope!... As provas eram entregues num envelope grande, pintado, desenhado e na sua parte superior a imagem de um pombo com um galho de oliveira no bico e o nome em letras góticas do aluno. Terminada a fala de da regente, o aluno mais sabido falava em nome de todos e era concedido aos pais o direito de dizer alguma coisa que sempre era declinado e começava aí a entrega das provas. Não havia aluno reprovado, o reprovado desistia no meio do caminho. Ela também se recusava dizer a média final do aluno, era um segredo dele e da família, justificava que quantidade não é sinônimo de eficiência. Dona Nancy chamava à mesa, individualmente, os alunos da primeira série até os alunos formandos da 5ª. série. Estes além das provas recebiam um diploma de letra desenhada. Com voz clara e firme, ela, Nancy de Assis, convocava e entregava ao seu aluno, o seu futuro:
 
-Maria! -Ricardo! -Samuel!...
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 03/08/2012
Alterado em 03/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr