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Memórias

Memórias
R. Santana


D. Zazá era o seu nome. Uma negra miúda, raquítica pelo cigarro, cabelos lisos pelo uso de cosméticos específicos, dentes amarelos de nicotina, corpo franzino e de idade indeterminada. Uns diziam que ela com 40 anos já não morria mais. Eu achava que ela aparentava uns 30 anos de idade, mas como diz o adágio: “negro quando pinta tem três vezes 30”, até hoje não sei sua idade.
Deus apertou na cor do negro, porém, para compensar-lhe, deu-lhe uma juventude duradoura. O branco é bonito na juventude, mas de velhice prematura. As rugas, as pálpebras caídas, a queda de cabelo, cabelos encanecidos, pele escamosa e as pintas senis são marcas da decrepitude do branco que começam surgir logo depois dos 40 anos de vida. O negro parece que ao nascer a natureza passa-lhe piche siliconizado. Sua pele sempre lisa e brilhante, dentes brancos e cabelos pretos mesmo depois dos 50 anos fazem dele um eterno moço. Quando a velhice chega mesmo, o negro já não se lembra da data de seu nascimento de tão velho.
Jovem estudante universitário, eu tinha sido indicado pelo prefeito para assumir o cargo de professor de matemática no único colégio de ensino fundamental e médio do município de Itabuna. Como todo jovem, absorvia facilmente, todas as idéias revolucionárias da época. Tinha herdado as idéias de direita, mas debandado com mala e cuia para os movimentos teóricos de esquerda. Não era um ativista, um revolucionário pragmático, mas um estudioso e admirador de Karl Marx e Engels, ou seja, um pacífico e passivo intelectual. Por isto, eu tinha na alma certos ranços e preconceitos sem admissão explícita que só o tempo cura. Ao adentrar na escola, deparo-me com aquela negra debruçada no balcão da secretaria, afetada, aparentemente estressada, fumando que só uma caipora. Pensei que fosse uma serviçal da limpeza.
- A professora Zazá está? – O senhor deseja o quê?- Fiquei parvo, atrapalhado, esperava uma resposta, não outra pergunta, balbuciei: - é... que... esperava encontrá-la para entregar-lhe este ofício (mostrei-lhe o ofício) do Exmº. Sr. Secretário da Educação, para incluir-me na programação escolar do ano subseqüente e definir a carga horária. – O quadro de professor está completo. Será que o Secretário não tem conhecimento? – Não lhe respondi de imediato, contive-me, conhecendo-me e necessitando do emprego, fui menos “pavio curto” e mais racional: - trouxe o ofício para professora Zazá, que é uma ordem e não um pedido do prefeito para o secretário, se a senhora afirma que o quadro funcional da escola está completo, dê-me isso por escrito que voltarei ao secretário (dei uma bofetada na negra com luva de pelica), ela respondeu-me ríspida: - isto é uma atribuição do diretor da escola, a minha é programar e coordenar os trabalhos pedagógicos para o retorno do ano letivo! – Contra-ataquei, respondi-lhe: - O ofício lhe é nominal, por favor, receba-o e dê o encaminhamento! – A negra não disse sim, nem disse não, pegou o documento sobre o balcão e deu-me as costas como resposta, entrando para o interior do estabelecimento.
Tomei como acintosa essa atitude dela. Jurei para mim, que vingar-me-ia na primeira oportunidade, não sabia como nem quando, saberia esperar e pensava: “essa negra pernóstica pensa que é a dona do mundo!...” Xinguei mentalmente os ascendentes e descendentes daquela negra até a quinta geração e se fosse um negro teria colocado tudo na lata sem medo ou titubeio. Não sei, hoje, o motivo de tanto ódio. Acredito que em sentimentos racistas atávicos e na possibilidade real de ser barrado por uma negra no meu primeiro emprego.
Fui admitido. Jovem e caxias, consegui imprimir o meu método de trabalho e até ter uma função administrativa nessa escola do município e uma direção geral numa escola do estado algum tempo depois. Estabeleci unilateralmente, algumas regras no meu relacionamento profissional com a professora Zazá, a exemplo de procurá-la, somente, por dever de ofício e jamais permitir-lhe dois dedos informais de prosa. Quando percebia sua presença, esgueirava-me e fugia discretamente para outro local, noutras palavras: eu a ignorava como pessoa.
A negra Zazá era culta, possuía uma retórica leve e inteligível. Dona de um raciocínio lógico e discursivo, nas reuniões pedagógicas dos últimos horários das sextas-feiras, ela desprendida e tendenciosa, empurrava goela adentro da incauta maioria docente todas as ações que seriam realizadas durante as unidades letivas sem discussão ou oposição. Vez ou outra, alguns gatos pingados se arvoravam e contestavam, todavia, quando era matéria do interesse da Sra. Supervisora, ela manipulava com ajuda dos seus puxa-sacos e acólitos que acompanhavam-na na votação. A oposição só tinha sucesso em matéria de somenos importância, subjacente aos interesses da maioria.
Lembro-me que certa feita recebi na festa de confraternização do final do ano letivo, o título de “Questionador”. Noutra oportunidade, teria ficado honrado, pois questionar é levantar problema e exigir solução. Discutir alternativas nos modus operandis do trabalho, significa sugerir seu constante processo de aperfeiçoamento. Porém, recebi o título como uma crítica pejorativa e subjacente não da maioria dos meus pares (possuía também muitos simpatizantes descomprometidos), mas de um grupo tendencioso que estava na cúpula daquele educandário manipulando mentes e administrando a escola com interesses egoístas e inconfessáveis.
Embora tivesse uma certa ojeriza àquela negra, os fatos e o seu valor intelectual forçavam-me reconhecer que era uma adversária fria, racional, simulada e perigosa. Para não ser esmagado e antipatizado profissionalmente, comecei usar estratégias que fossem do interesse da maioria mesmo em detrimento das minhas idéias pessoais. Às vezes, encampava e apoiava suas iniciativas quando percebia que era o desejo da todos. Essas táticas renderam-me novas simpatias e desequilibrou a influência inconteste da profa. Zazá nas decisões administrativas e pedagógicas da escola. Comecei também observar que entre mim e a negra, apareceu naturalmente, um respeito e uma admiração recíprocas. Deixamos de nos digladiar e passamos ter interesses profissionais comuns.
Nunca fui racista. Sei que o racismo em nosso país é camuflado e existe, é uma hipocrisia negá-lo. O racismo é cultural e histórico. As miscigenações constantes têm melhorado a eugenia do negro, assim como o acesso à educação, às profissões, ao trabalho. As leis que punem a discriminação têm contribuído para inclusão do negro em nossa sociedade contemporânea. Porém, esses avanços sociais e profissionais não podem ser atribuídos somente aos movimentos culturais e políticos impetrados pelos negros. A história é testemunha de muitos homens brancos abnegados que empunharam a bandeira da abolição escravocrata. Alguns brancos pagaram com a vida a defesa dessa bandeira. A liberdade do negro brasileiro não é produto somente dos históricos quilombos, também, é produto eloqüentes de muitos tribunos que levavam para o Senado e a para Câmara os anseios dessa raça marginalizada e esquecida nos fundos das casas-grandes, movidos por sentimentos humanitários e altruísmos. Quando a princesa Izabel assinou a lei Áurea, apenas materializou e formalizou o desejo da sociedade brasileira do Século XIX.
Final do ano de 1992, a minha filha mais velha apresenta um problema de saúde que de início achamos de somenos importância (anemia profunda), que com alimentação à base de ferro, muita verdura, vitaminas e os remédios prescritos pelo médico, o problema seria resolvido, considerando que era uma adolescente e todo organismo novo, geralmente, reage a qualquer forma de
tratamento por mais incipiente que seja. Ledo engano, há doenças que mesmo o jovem sucumbe e vai a óbito. Ana Paula resistiu bravamente no Hospital das Clínicas em São Paulo, por um ano, de uma plasia de medula, uma irmã gêmea da leucemia, mas ela sucumbiu e faleceu em meus braços em 11 de novembro de 2003.
Não sei se já lhe disse que D. Zazá era uma católica fervorosa, acho que não. Embora fosse uma pessoa inteligente, racional, ela era uma barata de igreja como dizem os hereges. Participava religiosamente dos eventos, das missas e das campanhas de solidariedade. Qualquer contratempo com alguém na escola, ela convocava todos para corrente de oração. Quantas vezes eu tinha participado profissionalmente para pedir ou agradecer a intercessão divina? Inúmeras. Nunca tinha me dado na telha que um dia estaria lá naquela sala de reuniões pedagógicas da escola para implorar uma centelha do amor de Deus para mim. Os meus pedidos de socorro e dos meus pares ao Criador foram em vão... Deus não faz milagre. Deus põe e o mundo dispõe. A cura pela fé ocorre quando o sistema bioenergético do indivíduo é receptivo à energia desprendia dos pensamentos positivos ou pelo progresso da ciência. Deus não deixou o sofrimento, o mundo é que produz as condições e as forças negativas para humanidade através de quebra da lei natural de evolução da matéria e do pensamento.
O nosso calvário começou no dia que fazíamos feira no extinto hipermercado Messias. Ana Paula jovem bonita, ela passeava entre as prateleiras do mercado atrás de saborosas guloseimas para si e para os irmãos. Sem mais nem menos, fomos surpreendidos por sua queda e desfalecimento momentâneo. Às pressas, levamo-la para o hospital COTEF, que ficou internada e para nós um estranho pedido da médica para que se procedesse uma transfusão de sangue e de plaquetas, pois seu organismo estava com níveis baixíssimos. A partir dali, ela e nós começamos uma maratona via cruci.
Dois negros de alma branca (lá vai o preconceito arraigado, alma não tem cor), dois negros de alma solidária foram inesquecíveis nesses dias de infortúnios: o negro Edu e a negra
Zazá. D. Zazá nos acompanhou desde os primeiros diagnósticos da ONCOSUL até a transferência de Ana Paula pra São Paulo. Zazá e Edu foram amigos e irmãos na desventura.
Hoje, pergunto a Deus, será que esse foi o preço que tive de pagar para aprender que a maldade e a bondade não têm cor? Não, não acredito que Deus use seus filhos inocentes como instrumentos de punição de pecado de outrem. Ademais certos
sentimentos são herdados de gerações que nos precederam. A minha antipatia pela professora Zazá e vice-versa, ocorreu porque herdamos dos nossos antepassados esses sentimentos sociais de ódio e discriminação. Noutras circunstâncias, prevaleceram os sentimentos de amizade, de empatia, de compromisso e divisão da dor.
O negro Edu surgiu na contramão histórica de D. Zazá. Conheci-lhe também na mesma escola, desde do início mantivemos uma relação profissional e pessoal respeitosa. Não privava do seu circulo de amigos, porém não era seu inimigo, éramos conhecidos... Na nossa desdita, foi prestimoso e solícito em todas as ocasiões.
Seria injustiça não dizer que nessa caminhada difícil não contamos com outros seres humanos solidários. Foram tantos que a memória se recusa nomeá-los. Aqui em Itabuna e na capital paulista, foram inúmeros os gestos de bondade e apoio que recebemos. Tivemos, naturalmente, alguns empecilhos, principalmente, de ordem financeira e estada, mas eram problemas solúveis ao contrário da doença de Ana Paula, que se agravava à medida dos dias de sua fase terminal. Ela sofrendo, eu e a mãe dela sofrendo com ela. Se for aqui que purgamos os nossos pecados, ela morreu santa e morremos com ela.


Autor: Rilvan Batista de Santana

Academia de Letras de Itabuna – ALITA























 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 30/07/2012
Alterado em 03/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr