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O ateu

O ateu
R. Santana


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O cirurgião Mauro Brandt era um ás no bisturi, um médico de mancheia, se o mal não fosse de morte Dr. Brandt dava um jeito, pois além de cirurgião, era versado em outras áreas médicas, o homem era um cientista, porém, os seus pacientes ficavam sem jeito com suas heresias: “Quem lhe salvou foi o meu bisturi, não Jeová!”, “Ah, foi Jesus Cristo? Não o encontrei na mesa de operação!...”, por isto, à boca miúda, ficou conhecido com o epíteto: “O ateu”. Não pense o leitor que Dr. Brandt se espinhava com o apelido, gozava de satisfação quando se lembrava das caras assustadas de suas pacientes beatas diante de suas heresias, dos seus desdéns religiosos e sua falta de fé.
Mauro Brandt Júnior, um dos seus filhos, hoje com 36 anos de idade, amava o pai, mas reprovava suas blasfêmias, suas brincadeiras de mau gosto, quando podia, ele chamava a atenção do pai:
- Pai, respeite a fé e a religião dos outros!...
Doutor Brandt não era má pessoa, afora sua incredulidade, nunca dizia não aos seus pacientes, era prestativo, se alguém batesse em sua porta, sempre lhe encontrava predisposto realizar uma ação beneficente. Era um homem de posse, seria muito mais se negociasse sem pejo o seu talento. Gostava de luxar, dos prazeres da carne, do poder, porém, não era escravo do dinheiro ou de posição social, para o médico, o dinheiro e o status eram meios e não fins.
Para o Dr. Brandt, a vida é fruto do acaso universal, explosão de forças energéticas da natureza, e, o processo deu origem às formas primárias e secundárias dos seres vivos. Ele não vê a origem do homem em Gênesis, a Bíblia é o eufemismo da vida, é a maneira fácil para explicar a origem do homem e Deus. Nenhuma espécie surgiu “pronta” na face da terra, ele acreditava que todos os seres vivos sofreram mutações e seleção natural até o estágio atual, Darwin que mais se aproximou da origem das espécies.
Enfim, Dr. Brandt cultivava, sem vergonha, com propriedade, idéias positivas, kantianas, nietzschianas com desenvoltura e convicção e que a razão sobrepuja a fé e as emoções.

2


O Hospital Dr. Alexander Fleming reservou uma sala no 10º. Andar, contígua à administração, uma sala de estudo e repouso para Dr. Brandt dado sua importância profissional e serviços prestados. Naquela boquinha da noite, quando se preparava para ir embora, foi chamado às pressas, por uma estagiária, para atendimento de emergência:
- Dr. Khalil do CC-E, solicitou sua presença, urgente! – debochado:
- Se Khalil tivesse tanta urgência não lhe mandaria, ele sabe que sou doido por mulher bonita, usaria o interfone! – a estagiária corou:
- Mas, é que... é que... houve um acidente grave!
- Doutorzinha, desde quando não tem acidente grave nesta cidade com mais carros do que gente!?
- É... é... – Dr. Brandt perdeu a paciência:
- Desembuche jovem! Perdeu o fôlego!?
- É sua filha... – Ela não completou. O médico num gesto brusco, bufando, deixou a sala, pegou o elevador de descida e correu para o CC-E - Centro Cirúrgico-Especial.
Dr. Brandt teve três filhos: um homem e duas mulheres. Kelly, sua filha mais nova, foi a vítima desse acidente e sua mãe Paola. O doutor Khalil não lhe deu a notícia pessoalmente, por prudência, para lhe poupar, também, preocupado com a vítima, não podia desperdiçar tempo, enquanto a estagiária foi chamá-lo, ele agilizou todos os procedimentos e quando Dr. Brandt chegou ao centro cirúrgico, o anestesista, as enfermeiras, Dr. Khalil e o seu assistente já estavam apostos na mesa de operação.

Paola fraturou o antebraço, um corte superficial na cabeça, e algumas escoriações generalizadas de menor gravidade, sem risco de vida. Porém, ficou internada para as observações de praxe e por insistência do médico de plantão no mesmo Hospital Dr. Alexander Fleming, onde Kelly seria operada.




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Quando Dr. Brandt chegou ao CC-E, os procedimentos já estavam sendo ultimados. Kelly ainda gritava de dor com as mãos pressionadas no abdome traumatizado. Dr. Brandt, a contragosto do seu colega Khalil, assumiu a cirurgia. Algum tempo depois, Kelly anestesiada, se deixava aos cuidados do seu pai, dos seus colegas e das enfermeiras.
O bisturi de Dr. Brandt fez uma incisão cuidadosa no abdome de Kelly, o quadro traumático mais feio do que aparentava na ultra-sonografia, o sangue pouco e pouco se espalhava pelas alças do intestino delgado, à altura do duodeno, era grande o trabalho das enfermeiras pra limpá-lo, como se mais de um vaso sanguíneo tivesse rompido...
O tempo urgia, a pressão da mocinha oscilava, aparelhos foram ligados para regular a respiração e os batimentos cardíacos, mas a vida se esvaía, o quadro parecia irreversível... chumaços de algodão ensopados de sangue, quando... de repente... num átimo de tempo... Dr. Brandt deixa os seus instrumentos na bandeja... fez uma expressão no rosto de vencido e disparou para Capela do hospital, quedou-se e ajoelho-se em busca de Deus:
- Senhor perdoe este desgraçado! Este miserável que tantas vezes zombou de Ti!... Sei que não mereço o teu perdão, blasfemei o tempo todo, zombei das coisas sagradas, mas não permitas que a minha filha desça ao vale da morte... Hoje, fui vencido pelas forças da natureza, não por falta de aptidão, já fiz centenas de operações iguais com sucesso absoluto... Vós perdoastes Saulo que prendeu e açoitou os teus discípulos, Tu perdoaste Pedro que te negaste três vezes, Tu perdoaste aqueles que te açoitaram e te colocaram na cruz, inclua-me entre eles, Senhor!... – O suor escorria-lhe pelo corpo...
Na sala de cirurgia a Providência tinha operado... Dr. Khalil, tenso, suado, ultimava as últimas suturas, os últimos arremates!...

Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: Conto
30.08.2011
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 28/07/2012
Alterado em 03/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr