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Deus não existe
 
Deus não existe
R. Santana

I
Doutor Bruno Santieiro, suava por todos os poros, embora dominasse todas as técnicas de cirurgia do coração. Aquele paciente que já tinha feito uma angioplastia algum tempo atrás, agora, com duas veias obstruídas e um quadro clínico não muito favorável, não dava fôlego ao cirurgião numa by pass e se não fosse a perícia e a destreza inquestionáveis do jovem médico, sua equipe, e uma parafernália de instrumentos e aparelhos de suporte e uma mãozinha de Deus, aquele paciente já teria ido pra cidade de pés juntos.
Embora a cirurgia tivesse oferecido alguma dificuldade, a intervenção humana
tinha sido um sucesso, daí em diante, médicos e família, aguardariam os recados da
natureza para o veredicto e Dr. Bruno lhe mandasse de volta ao lar.
Mais um dever cumprido, ego inflado, consciência tranquila, o jovem cirurgião é
surpreendido com os efusivos “Deus lhe pague”, quando de praxe, comunicava à família
do seu paciente, o sucesso da cirurgia:
-A cirurgia foi de risco, mas o resultado foi satisfatório, vamos aguardar a reação
do seu organismo!
-Deus lhe pague! Deus lhe pague! Deus lhe pague!... – foi a reação da esposa, o
médico foi ríspido:
-Senhora, Deus não existe! Se existisse, milhares de inocentes não padeciam nos
leitos dos hospitais nem seriam arrastados pelos desastres da natureza!
-Pelo o amor de sua família, não blasfeme, não valorize a criatura, mas o Criador, os desígnios de Deus são inacessíveis ao conhecimento do homem, ao homem fica Sua misericórdia!
-Senhora deixe de pieguices!- sisudo.
-Não é sentimentalismo... A aliança que Jesus Cristo celebrou com o Pai não foi
em vão, a morte não é o fim, mas o começo de um novo tempo no seio de Deus. Sua
promessa de vida eterna não pode ser uma mentira! – justificou.

- O homem não é semente, senhora, a morte do homem sinaliza o retorno da matéria à sua origem, a matéria perdeu a vontade de viver, que vocês chamam de alma, nós, ateus, chamamos de energia, élan vital... – encerrou o diálogo numa rabanada.
II
Raimundo Araújo, homem fisicamente desprovido, uma mistura de chofer, moleque de recado, secretário, repositório de queixas, lamentações, enfim, um confidente da família Santieiro, tratado por “Mundinho”, estranhou a demora de sua patroa com o pequerrucho na clínica pediátrica.
O pimpolho nascera com problemas de saúde, desde sua chegada há 6 anos na
casa do famoso cirurgião Bruno Santieiro, que Mundinho é testemunha da labuta dos seus patrões com o seu primogênito, mas àquela tarde, sensações diferentes, pesarosas,
envolviam o seu corpo, ele não gostava daquilo... Sua companheira vivia fustigando-o para que freqüentasse uma casa espírita, que ele estava desperdiçando sua força mediúnica, os seus pressentimentos encerravam em algo ruim, aí, ela enumerava os acontecimentos que o seu companheiro pressentira, ele negaceava:
-Maria deixe de bobagem!...
Católico praticante, não gostava de alimentar os devaneios e as maluquices de sua mulher, Maria possuía uma imaginação fértil e supersticiosa. Embora se declarasse católica, ela cultuava o kardecismo e se Mundinho lhe desse corda, ela frequentaria também os terreiros de candomblé, acreditava em bruxos e bruxarias.
Porém, naquela tarde, as fantasias de sua mulher não fossem de tudo imprestável, a danada poderia ter lances de razão, estalos de onisciência, lances de verdade se os seus pressentimentos se confirmassem e a família Santieiro tivesse num beco sem saída com o pequeno Bruninho.
Não se fez esperar mais tempo quando Dra. Karla desce espavorida da clínica,
semblante carregado, contida no choro, cheia de ordens, Mundinho é incumbido buscar
roupas do menino e dela, transmitisse urgência ao seu patrão, pois o garoto fora
internado:
-Senhor Mundinho – nunca dispensava o tratamento de “senhor” e “senhora” para os empregados – não demore, fale ao Dr. Bruno vir com urgência! - O empregado não se fez esperar...
III
Cansaço físico, olheiras visíveis, semblante quebrado, cabisbaixo, contrastavam
com o físico alto e esbelto, depois de uma semana, de noites mal dormidas do Dr. Bruno
Santieiro, é que o estado de saúde de Bruninho oscilava entre bem e mal, e não, ótimo! A ebre resistia deixar o moleque não obstante os recursos profiláticos empregados.
Mundinho compartilhava a dor do patrão, aprendera gostar do pimpolho, inúmeras vezes, saíam a sós para brincarem nos Shoppings ou passarem nas praças a pedido dele e autorizado pelos seus pais.
Ele não privava da intimidade da patroa – nem os outros empregados -, embora o
seu patrão tivesse ideias malucas, o amava, Dr. Santieiro não era um patrão, mas muito
mais do que um patrão, chovesse ou fizesse sol, aos domingos, eles jogavam futebol de
salão, acompanhava a família à praia ou outro lazer, aonde quer que a família fosse, ele
estava a tiracolo e, se Mundinho tivesse uma simples dor de cabeça, já era motivo de
preocupação para o médico.
Vê-lo pra baixo, impotente, de pés e mãos amarradas, a mercê da doença do filho, cortava coração, às vezes, Mundinho tinha vontade de chorar e não o fez não por
machismo, mas para não ser flagrado, porque iria apenas aumentar o desespero dos pais
de Bruninho.
Naquela tarde à saída do hospital, não tinham percorrido um quilômetro de volta
para casa, quando Bruno pede ao seu motorista que estacione o carro na primeira praça
que avistaram:
-Vamos dar uma andada para arejar os cornos!... - brincou.
-Patrão, os meus são uns restinhos da primeira mulher se Maria me trai são com os espíritos, a mulherzinha ou vai à igreja ou vai à sessão espírita, a Bíblia de manhã e o
Livro dos Espíritos à noite!...
-E você? – pegou-lhe de supetão.
-Eu, doutor?... Sou cristão, Jesus é ressurreição e vida!
-Esse negócio de vida eterna e ressurreição, é conto de carochinha... – mais
pensativo:
-Meu filho está ali padecendo... Inocente, nunca fez mal a ninguém, que justiça
divina é essa que o justo é punido e o injusto agraciado?... – com a voz embargada.
-Doutor, os discípulos de Jesus também tiveram essa inquietação ao verem um
cego de nascença. Perguntaram-Lhe: “Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que
nascesse cego?” Respondeu Jesus: “Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se
manifestem nele obras de Deus”. João 9:1-3. – completou:
-Os desígnios de Deus e o seu amor são infinitos, às vezes, incompreensíveis, mas Ele tem um lugar para cada um de nós, patrão!
-Acreditaria Nele se o meu filho ficasse são... – acrescentou:
-Distribuiria parte do meu patrimônio com os pobres!
-Deus não é mercador!
-Fazer o bem não leva ao céu, Mundinho?
-Não em troca, mas em graça e doação. O exercício da caridade e da solidariedade em primeiro lugar, enfim doutor, o senhor tem que “nascer de novo” e poderá pedir tudo ao Criador de acordo Sua promessa: “Pede-Me, e Eu te darei as nações por herança e as extremidades da Terra por tua possessão”. Sal. 2:8. - concluiu:
-O homem que exercita sua fé em Jesus Cristo e distribui caridade, solidariedade, Deus é com ele.
IV
Naquela noite, Bruno cochilou e dormiu o sono dos justos ao lado do filho, quando ao sol saindo, despertou atoleimado com os gritos do filho:
-Paiê, paiê, paiê!...
-O quê foi, filho?
-Ela (com a imagem de Nossa Senhora nas mãos), me colocou no colo... – o pai o interrompeu:
-Quem lhe deu esta santinha, meu filho?
-Mundinho!!!...
A razão foi vencida pela fé. Somente os puros de coração podem ver Deus e
pedir-Lhe resposta para os seus males.
Doutor Bruno quedou-se de joelhos e chorou, chorou, chorou...


Autor: Rilvan Batista de Santana.
Gênero: Conto (registrado)
30.09.2009
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 11/07/2012
Alterado em 03/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr