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História & estórias
História & estórias
R. Santana



I

José do Ó

A região Sul da Bahia tornou-se notória pela riqueza do cacau, pelo folclore de sua gente, pelo seu povo cordato, pela sua música e dança e pelo seu povo festivo e trabalhador. É uma injustiça atribuir ao baiano à pecha histórica de folgado, preguiçoso e ocioso porque é um povo laborioso e empreendedor sem prejuízo de curtir a vida.
Jorge Amado, decerto, foi um dos primeiros e o principal escritor em traduzir nas páginas dos seus romances, as lutas, a derrubada das matas, os plantios de cacau, os caxixes, os jagunços, as tocaias e a índole dessa gente. Em seus textos, há um acervo de pequenas histórias, mil curiosidades, causos e mais causos, enfim, Amado soube, com genialidade, colocar no papel a sabedoria do seu povo.
Sem a mesma genialidade do autor de Tocaia Grande, quero registrar neste papel, algumas histórias populares, estórias do povo...
Se a sovinice tem pai, ele é o pai. Egresso de terras sergipanas, ele migrou para o Sul da Bahia ainda rapazola. Foi empregado no comércio por pouco tempo, por pouco tempo, deixou de ser boi pra ser ferrão.
Inteligente, trabalhador, mão-de-figa, diligente e ladino comercialmente, José Oduque, conhecido por Zé do Ó, fez fortuna pouco tempo depois, nas terras do cacau.
Feito o pé-de-meia, maduro, José do Ó voltou aos bancos escolares, beneficiado pelos programas do MOBRAL, 99 e 101, em exíguo tempo, concluiu o curso de bacharel em direito pela UESC, entrou na política e tornou-se prefeito de Itabuna.
Um homem que deverá ser lembrado no futuro pela sua austeridade com a coisa pública. Prefeito nos idos dos anos 70, uma de suas primeiras providências, depois de eleito, foi proibir suas empresas, de peças automotivas, revenda de autos, posto de combustível e materiais de construção, não participarem de nenhum processo de licitação da prefeitura de Itabuna na venda de bens ou serviço.
Empresário bem sucedido, não decepcionou os seus munícipes na condução dos negócios públicos. Além de sua postura ética, deixou sua marca empreendedora com ações administrativas ainda hoje lembradas.
O senão que se faz de Zé do Ó, a única nódoa pessoal, é sua natureza parcimoniosa, beirando à miserabilidade e à mesquinhez, contam-se várias histórias escabrosas de sua avareza, dizem as más línguas que jamais será solidário com o próximo se tiver de meter a mão no bolso, que ele não dá adeus para não abrir à mão, que se cotizou com os irmãos pobres, as despesas dos funerais dos pais, que jamais alguém lhe viu estender a mão para alguém caído, que desconfia até de sua sombra...
Mas faz-se jus registrar que ele enriqueceu honestamente, que sua fortuna não tem mancha de sangue, que sua fortuna está estribada no trabalho e na austeridade pessoal e no seu faro para os bons negócios.
O bem e o mal são faces de uma mesma moeda. Não existe natureza humana absoluta boa ou má, quantas vezes, o mais vil e desalmado criminoso, esboça os mais elevados sentimentos de humanidade e solidariedade? Por isto, ninguém seja visto pelo que tem de mau, mas pelo que tem de bom.



II

João Bode


Ele não falava, bodejava... Negro forte, atarracado, queixo saliente, ioruba, parecia um orangotango despelado fugido da selva ou o Homem de Neanderthal. Não havia certeza que se chamasse “João”, o epíteto “Bode” lhe foi acrescentado por causa da sua aparência e pelos grunhidos que soltava na fala.
Agregado da família Sena e Almeida por herança, ao longo dos anos adquiriu um verniz social: vivia arrumado, bem nutrido, escovado e calçado – refugo dos senhorzinhos. O QI de João Bode perdia para um menino de 10 anos de idade, analfabeto de pai e mãe e madrinha da apresentar, porém, era um negro de temperamento não agressivo, bem-comportado e cordato. Era incapaz de qualquer maldade.
Nos idos dos anos sessenta, a política itabunense estava tão avacalhada e desmoralizada quanto à política do nosso tempo, com os escândalos de Sarney, de Renan, de Delúbio, de Dirceu, de Maluf, de Jéferson, dólar na cueca, anãos do orçamento e tantos outros maus exemplos da política nacional que alguns insurretos, descontentes com a política local, rapazes gozadores, bem-humorados e criativos, indicaram João Bode, candidato a vereador, claro, que tudo de mentirinha.
Dentro de pouco tempo, João Bode tornou-se o símbolo do descontentamento, da ojeriza, da aversão do povo com a política da terra e, ele caiu de imediato no gosto popular do humor.
Os “coordenadores” de campanha de João Bode alugaram um teco-teco, sobrevoaram a cidade, despejaram milhares de folhetos com a “plataforma” do candidato, espalharam “santinhos” em todo município, outdoor, dum dia pra noite, João Bode virou estrela, mais conhecido do que farinha na feira.
Os comícios eram uma festa. Um sanfoneiro abria o forrobodó, os “partidários” ( jovens estudantes e intelectuais anarquistas) discursavam ressaltando as qualidades do proeminente candidato (João Bode de terno e gravata em cima do palanque, ao lado dos oradores), arrancando aplausos da multidão (mais de dez mil pessoas), porém, a coqueluche se dava, quando o locutor, num estardalhaço, com mil e uma peripécias, num grande teatro, anunciava que Sua Excelência João Bode ia falar, aí, os estrépitos de vozes, palmas e apupos ensurdeciam...
João Bode com o microfone na mão, atrás dele alguém que lhe soprava o discurso com as mais desvairadas propostas e João não se fazia de rogado, incontinenti, bodejava o seu programa administrativo:
-Vou alimentar jegue com pão-de-ló...
-Vou botar os políticos na cadeia...
-Vou asfaltar o rio Cachoeira...
-Vou fazer um rio de leite com as ribanceiras de cuscuz...
-Vou trazer a praia de Ilhéus pra Itabuna...
O povo ia ao histerismo... A garotada se urinava de tanto rir, os velhos davam crise de tosse de tanta alegria, as mocinhas gozavam de satisfação, para os verdadeiros candidatos, um acinte, uma anarquia, uma esculhambação...






III

Zé de Juvita


Não o conheci pessoalmente, quem o conheceu, tinha-o como boa gente, não obstante suas esquisitices, porém, foram essas esquisitices que lhe fizeram lembrado até hoje.
Juvita, grande fazendeiro do cacau, não usava calçado. Com os pés descalços, bocapiu na mão, ele ia aos bancos e às principais casas comerciais de Itabuna. As gafes e os constrangimentos se sucediam porque quem não o conhecia, tomava-o por um pobre diabo:
-Senhor, passe aqui outro dia, não temos trocado... – tomava-o por mendigo.
Juvita não era sovina, mas um simplório, um tabaréu que se recusava absorver os fumos dos novos tempos. Paletó, gravata, camisa social e sapato eram coisas de almofadinha e doutor, não dele, que vivia embrenhado na mata, esses apetrechos e esses vestuários lhe causavam urticária e mal-estar. O seu gosto era uma calça de cáqui ou de brim, uma camisa de algodão e quando em vez, em tempo de festa numa de suas fazendas, calçar uma alpercata de cangaceiro de tiras de couro cru.
Não poderia ser tomado por um abestalhado, um alienado, Juvita era em sua época, um dos mais abastados fazendeiros, uma fortuna sólida, construída no cabo de facão, na enxada e em seu inato tino administrativo.
Há muitas estórias do seu desprendimento, mas uma estória, o frete da mala, faz-se jus registrar para o alcance do leitor, do seu altruísmo.
Conta-se que em tempos idos, quando ainda não existiam as modernas sacolas de viagem, a mala era uma saco e o cadeado era o nó ou a mala era de madeira revestida de couro cru desenhado, um cabra encontrou um caminhante dentro das roças de cacau e queixou-lhe do peso da mala e se eles estavam longe da fazenda de Zé de Juvita, o caminhante informou ao desconhecido que a fazenda distava uns dois quilômetros e foi surpreendido com a pergunta:
-Quanto vosmecê quer pra levar a mala? - acordaram o preço.
O camarada quase teve um troço quando chegou à fazenda e descobriu que o seu parceiro de viagem, o homem que lhe carregou a mala, não era outro, senão, o fazendeiro Zé de Juvita!...

IV

Oscar Marinho


Em 1972 (leitor, não me pergunte o dia e o mês) a rádio Globo deu em manchete nacional, que o maior produtor individual de cacau do mundo tinha falecido em Itabuna, Sul da Bahia e o jornal Globo trazia em suas páginas, uma breve biografia de Oscar Marinho Falcão.
Já se sabia naquela época, que Oscar Marinho era o homem mais rico da região e quiçá da Bahia, mas se desconhecia o tamanho de sua fortuna, que ele colhia mais de 120 mil arroubas de cacau, quando a maioria dos fazendeiros não passava de 2000 arroubas que lhes davam uma vida nababesca.
Oscar Marinho, na juventude, trabalhou com o seu pai Máximo Marinho Falcão como ajudante de alfaiate, moço, jogou futebol com talento nos remotos anos de 1911, mas enriqueceu no comércio e na lavoura.
Ele não usava jagunços, não usava o bacamarte para tomar terras do vizinho, era um homem de paz, bonachão, amante da sabedoria do povo, mesmo quando foi vítima de uma tentativa de homicídio pelo seu genro Washington Quintela, (para cedo herdar, dizem as más línguas), deixou que o tempo se incumbisse da vingança e como era um homem de sorte, Quintela foi tragado pelo mar pouco tempo depois, pilotando o seu avião.
A leitura que se faz desse desbravador do cacau, desse homem de origem pobre que fez fortuna, é que era um homem ladino, esperto comercialmente, um judeu tupiniquim do século passado, se algum vizinho de roça lhe tomava dinheiro, ele de bom grado emprestava com juro escorchante e, se o inepto do agricultor não pudesse lhe pagar, entregava-lhe também de bom grado, o seu pedaço de terra para honrar o empréstimo.
Uns burburinhos de sua época dão conta que quando alguém ia lhe quitar uma nota promissória, ele a embolava, jogava-a no lixo às vistas do ingênuo devedor e assim que lhe dava as costas, Oscar corria à lixeira e restaurava a nota promissória com ferro de roupa, tempo depois, o titular do débito era cobrado por inadimplência...
Folgazão, envolvente, bom papo, maquiavélico comercialmente, não dava ponto sem nó. Com exceção do genro, nunca peitou e nunca foi peitado por ninguém, sua capacidade de convencimento era sua maior arma, era capaz de tomar o último níquel de um pobre coitado e deixá-lo com sentimento de gratidão.
Não queimava dinheiro, não era perdulário, não se tem notícia de casa montada para amante ou envolvimento com filha ou mulher dos seus agregados (procedimento comum dos coronéis do cacau), ele era respeitoso, mulher só a mulher do casamento. Porém, não era sovina nem miserável, era farto na mesa e no vestir. Gostava de roupa branca. Usava, dia de semana ou feriado, ternos bem talhados de linho ou casimira, meia branca, camisa branca e sandália de tiras, fechada no calcanhar.
Espirituoso, certa feita indicou um protegido para trabalhar no extinto Banco Econômico, não se sabe o motivo, o gerente não lhe deu um “não”, também não lhe deu um “sim”, ficou enrolando o seu afilhado, que na casa do sem jeito, queixou-se ao seu protetor. Oscar pegou o afilhado pelo braço e foi ao banco tirar todo o seu dinheiro, foi um vexame...
Não havia na agência tanto dinheiro disponível para o resgate, a soma era astronômica, foi necessário o gerente socorrer-se ao Banco do Brasil. Dinheiro contado e recontado, pacotes de cédulas circundados na borracha, sacos de dinheiro empilhados, juros acrescidos, carro-forte esperando, revólveres e rifles de prontidão, gerente abestalhado, parvo, não se aguentando em pé de nervoso, preocupado com a perda do cliente, do coronel do cacau, seu emprego ameaçado, quando do nada Oscar Marinho resolve voltar atrás, estava satisfeito com o “zelo dos seus tostõezinhos”, mas antes de sair, lembrou ao gerente:
-Filho – apontou o protegido -, tu estás em falta com este rapaz! – como de bobo o gerente só tinha a cara e o jeito de andar...
Ele tinha suas tiradas filosóficas:
-Cavalo de corrida morre na pista...
-Quem nasceu pra tatu, morre cavando...
-Quem Deus prometeu vintém, não dá dez reis...
-Se o meu amigo tem carro pra que comprá-lo?...
-Quem tem pai rico não se sujeita ao dinheiro...
Morre o homem, fica a fama, Oscar Marinho ainda hoje é lembrado pelo seu jeito de ser, pela natureza cordata, por ter sido até hoje o maior produtor individual de cacau de todos os tempos, pelos seus empreendimentos, pelo colégio estadual CIOMF que contribuiu para sua construção, doando ao governo mais de um hectare de terreno, pela rua que empresta o seu nome, mas acima de tudo, pelos benefícios que espalhou e pelo exemplo que fica.


***

Algumas Linhas:

Tocaia Grande, de Jorge Amado, é o retrato da Terra do Cacau, sem lei e de muitos donos, construída com suor, sangue e choro, esquecida ao longo do tempo, hoje, as novas gerações não têm orgulho desse passado, celebram somente, aos pioneiros que a desenvolveram com trabalho, paz e amor.


Obra: História & estórias
Autor: Rilvan Batista de Santana
Data: 20.08.2009














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Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 07/07/2012
Alterado em 03/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr