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A vedete

A vedete
R. Santana




I


Era a terceira ou quarta vez que tinha ido ao abrigo São Francisco no ano 2003. É uma construção em forma de H, com dois prédios frontais de dois pavimentos cada um, ligados por uma passarela de falsas colunas, encravado em um outeiro, ladeada de jardins e palmeiras da Índia e cerca viva de espinheiro que não impede o vivente do abrigo se deliciar com a linda visão da cidade de Vila Nova, embaixo.
Nos segundos andares ficam as salas administrativas, a lavanderia, o almoxarifado, a farmácia, uma despensa, uma grande cozinha e os dormitórios das Irmãs Clarissas, administradoras do abrigo.
Nos primeiros andares ficam apartamentos de cinco ou seis leitos cada, dos velhos abrigados. Nos térreos, os dormitórios femininos, salão de festa, salão de ginástica (para as pessoas válidas da instituição que quisessem usá-lo), a recepção e nos fundos dos prédios uma grande piscina. Todo esse complexo ligado pela passarela, por disfarçáveis escadas, rampas e passeios antiderrapantes.
Embora esse abrigo fosse entregue à Ordem Franciscana para administrá-lo, tinha sido construído e doado por um grande empresário católico, homônimo de São Francisco.
Ali, encontrei uma sapeca menina de 82 anos bem vividos, chamada de Angelina Murad que se esforçava para não envelhecer, ou melhor, se esforçava para não ter uma velhice decrépita. E, duma forma ou doutra conseguia. Alta, viva, inteligente, de olhos esverdeados e mesmo com a avançada idade, era esbelta, ainda tinha marcas duma juventude prazerosa doutros tempos.
Ela não tinha complexos sociais. Enturmava-se com os velhos e os novos com a mesma facilidade. Brincava, cantava, dançava com mais desenvoltura do que suas colegas anciãs bem mais novas.
Ficamos amigos no primeiro encontro. Desde cedo, tratava-lhe sem cerimônia, embora tivesse idade de ser seu neto. Compreendi logo que se a tratasse com



formalismo não teria o prazer de sua companhia, de sua conversa e jamais teria penetrado em sua história.

II


Final da década de quarenta, Angelina Murad com 27 anos de idade, é uma das principais estrelas do Teatro de Revista. Uma artista completa: canta, dança e domina musicalmente alguns instrumentos, notadamente, o piano e o acordeão. De uma empatia carismática. É assediada por empresários, diretores, colegas e por alguns figurões da elite da capital federal.
Não faltavam propostas de casamento, de contratos milionários, de convites para atuar em grandes musicais, convites para o incipiente cinema nacional e não faltavam também, propostas só de interesse sexual. Ela atendia algumas propostas, driblava outras e respondia com desdém quando era ferida em sua dignidade.
Muito dada, muito querida, todavia, jamais permitia que sua vida profissional interferisse na pessoal. Quando ia pra cama com alguém, ia por bem querer, por prazer, por tesão, independente dele ser rico ou pobre, dele ser o diretor do espetáculo ou o dono da companhia ou um colega de atuação. Leiamos o seu depoimento:
“Meu nome de batismo é Emma Fenstermacher. A minha mãe era gaúcha e o meu pai alemão de Colônia. No início do Século XX, depois da I Guerra Mundial, ele embarcou num navio e veio atracar no porto de Santos, atraído pela fama de uma terra ignota. Levado por notícias de seus conterrâneos radicados no Sul do país, abrigou-se logo depois no Rio Grande do Sul, onde conheceu e casou-se com a minha mãe, um ano mais tarde.
Eu sou a mais velha de quatro irmãos, quando me dei por gente, meu pai já tinha comprado uma modesta casa em Santa Rosa e era sócio de uma pequena estância. Não éramos ricos mas, tínhamos escola e fartura na mesa.
Na minha adolescência, tive aulas de balé, canto e teatro. A minha mãe era uma cantora caseira e meu pai um admirador das artes quaisquer que fossem.
Embora houvesse certo preconceito pela carreira artística, em particular, mulheres que abraçavam essa carreira, os meus pais deram vazão à minha vocação de cantar e representar.
Comecei participar desde cedo em minha terra de grupos de teatro, cantava em saraus da família e de conhecidos e com o tempo passei cantar em festa de aniversário de criança e adolescente com um pequeno cachê.
A Primeira Guerra Mundial trouxe o meu pai para o nosso país e a Segunda Guerra Mundial o levou para sempre. Quando a guerra estourou, ele já tinha mais de 45 anos de idade e quando Getúlio declarou guerra à Alemanha, o coração dele não suportou. Foi um baque pra ele a idéia de dois povos que ele amava entrarem em conflito bélico. Não tinha perdido o amor pela pátria de nascimento, entretanto, daria a vida pela pátria adotiva. O Brasil era a terra da sua esposa e dos seus filhos que estavam acima de qualquer sentimento e a morte de qualquer brasileiro em conflito lhe era insuportável, era o fim.
Com a morte do meu pai, eu e minha mãe viemos para o Rio de Janeiro, a Capital Federal, em março de 1947. Os meus irmãos preferiram ficar trabalhando e dando continuidade aos negócios do meu pai.
No início as coisas não foram fáceis, não conhecíamos ninguém, além disso, estávamos num período de vacas magras, o país ainda sentia o trauma da guerra e a economia não andava em bonança, afora os problemas políticos. Tive que bater em várias portas até conseguir uma oportunidade de trabalho em uma casa noturna de pequena expressão artística.
Depois de alguns meses de trabalho, fui convidada por Walter Santino, principal diretor de teatro, para fazer uma ponta numa peça da obra de Henrik Ibsen, interpretando uma dona de casa americana. O meu papel era de somenos importância mas desempenhei com tanta graça e também a peça no conjunto, que ficamos em cartaz mais de um semestre e propiciou-me vôos mais altos.
Participei de alguns filmes e espetáculos de pornochanchadas que foram tão ruins que prefiro não citar os nomes. Não foram ruins pelo desempenho, eram rapazes e meninas de talentos indiscutíveis, salvariam qualquer texto por pior que fosse, porém, não passavam de espetáculos sexuais de apelação. Entretanto, era a coqueluche do momento, uma verdadeira mina de ouro. As nossas pernas eram disputadíssimas pelas lentes dos fotógrafos. As principais revistas do país exploravam e estampavam os ângulos mais picantes dos nossos corpos.

Ganhei muito dinheiro. Comprei apartamento, ajudei meus irmãos e viajei outro tanto. Fizemos espetáculos em Paris, Roma, Londres, várias cidades dos Estados Unidos, México e Ottawa. Éramos recebidos com carinho e simpatia nas melhores casas noturnas.
Quando voltamos ao Brasil, o meu nome era uma marca nacional. Deixei de participar de espetáculos vagabundos e investir numa carreira mais burilada. Não me faltava convite. As principais empresas nacionais, pagavam-me a peso de ouro para veicular os seus produtos. A televisão estava engatinhando no eixo Rio-São Paulo, fui sua garota propaganda por algum tempo, mesmo depois que passei atuar em suas novelas...” – abruptamente, ela interrompeu a fala. Fiquei preocupado, não tive outro jeito senão perguntar-lhe:
-O quê houve?
-Nada meu filho, é coisa da idade, vou descansar. Contar-lhe-ei o resto depois. Sim?
-Tudo bem.

III

Voltei lá na semana seguinte. A minha curiosidade era maior do que a minha ansiedade, queria ouvir o resto da história de Emma, ou de Angelina. Acho que não daria para separar Emma de Angelina porque a partir do Rio de Janeiro, elas eram xifópagas. A carioca estava dentro da gaúcha e a gaúcha estava dentro da carioca à Aristóteles: “se um me deu a vida; o outro, me deu a arte de viver”. Ela nasceu como Emma e amadureceu como Angelina.
Naquela semana era festa no abrigo São Francisco, Angelina estava mais solicitada bouquet de noiva. Todos chamavam-na para dançar. Comigo ela dançou umas duas ou três vezes.
Dançava com uma leveza e uma simplicidade como ninguém. Ali no salão, dançando como se não estivesse pregada ao chão, a Angelina se sobrepunha à Emma com clareza. Quem não conhecia seu passado, ficaria boquiaberto com seu desempenho pela provecta idade.
Retornei lá duas semanas depois, não queria dar bandeira da minha ansiedade. A sabedoria popular diz que: “o apressado come cru”. Tinha todo tempo do mundo, não diria o mesmo de Angelina. Embora sua auto-estima fosse lá em cima, notava-se que ela definhava dia-a-dia. Tinha algumas doenças da velhice, nada que se perdesse o sono, no entanto, notava-se que alguma coisa lhe mexia na alma, como se os fantasmas do passado andassem lhe perturbando e tivesse consciência de sua impotência.
Fui informado que Angelina tinha ido passar um final de semana na casa de um sobrinho-neto. Não demonstrei preocupação pela ausência dela, afinal, ia ao abrigo muito antes de conhecer Angelina Murad. Passei o dia cuidando de outras pessoas. Não havia festa nesse dia, havia um movimento normal dos dias de visita que acabou absorvendo-me todo tempo, quando deixei o abrigo, a noite ia chegando.

IV

Demorei um mês pra voltar ao abrigo. Atividades particulares absorviam-me prejudicando a minha atividade voluntária que fazia aos hospitais e às casas de amparo à velhice e ao menor nos finais de semana. Todavia, não me saía da cabeça o desejo de conhecer o restante da história de Angelina. Não queria bisbilhotar sua vida por bisbilhotar, movido pela curiosidade mexerica, mas queria passar para os outros o significado relativo da vida, em particular, o lado relativo do sucesso. Não existe tempo bom que não se acabe e a recíproca é verdadeira quando se diz: “depois da tempestade vem a bonança”. Não entendia como uma pessoa tão famosa estava ultimando seus dias num abrigo, abandonada por parentes e amigos.
Depois de tantas investidas, eu a encontrei disponível naquela tarde e parecia-me querer jogar conversa fora e ter dado falta da minha ausência:
-O quê houve meu filho? Sumiu!... Enjoou desta velha? – não tive nem tempo de lhe cumprimentar.
-Angelina (nada de tia ou avó), estava trabalhando esses dias. Não sou aposentado, ainda não estou mamando nas tetas do governo como uma pessoa que está defronte a mim! – brinquei.
-Ah, ah, ah, se eu tivesse eu tivesse de viver desse salário da aposentada, Alberto, eu estaria vivendo de chorumelas... – lamentou.
-Bem, não vamos consertar o mundo. Deixa Deus com seu mundo e gambá com seu fedor, hoje, quero matar a saudade que eu senti de você esses longos dias que não lhe vejo. – enchi sua bola...
Fomos sentar em um banco de cimento que ficava no jardim. Um recanto aprazível, cercado de orquídeas, margaridas, roseiras, violetas e alguns espécimes raras que não conheço o nome ou a família.
Como sempre, ela respirava alegria. Não me lembro de tê-la encontrado macambúzia, triste. Brincava dizendo que “tristeza não paga dívida e do mundo nada se leva”, por isto, não me foi difícil, com jeito, empurrar-lhe para que contasse o resto da história:
-Angelina, você terminou sua vida artística na televisão? – joguei a isca.
-Não! Trabalhei em várias novelas quando era feita ao vivo. Porém, nunca gostei de novela. É muito trabalhosa e não tem o olho no olho com no teatro, além da história ter desdobramento por vários meses. Terminei no teatro, dançando, cantando e representando. – insisti:
-Você começou trabalhar na televisão brasileira quando ela estava engatinhando e não me falou como veio parar aqui no abrigo.
-Aqui, cheguei há 10 anos, por livre e espontânea vontade. Vim visitar uns parentes, gostei da cidade e quis ficar perto deles, entretanto, sem morar em suas casas, o abrigo foi o melhor lugar que encontrei pra ficar, porque é gente da minha idade e não fico solitária, além de não ser peso pra parente ou aderente. – não era sua chegada ao abrigo que desejava ouvir, queria ouvir os verdadeiros motivos que precederam sua chegada àquela casa, fui direto ao assunto:
-Querida Angelina, você parou sua narração quando começou atuar em novelas, depois de consagrada no cinema e no teatro, o quê ocorreu depois disso?
-Você tem razão, entre o início do meu trabalho de novela e a minha entrada aqui, existe um hiato de uns 40 e tantos anos. Se tornar-me enfadonha na minha fala, interrompa-me. Quê prazer lhe trará a história duma velha?
-Não fale assim! Velho é molambo... Você é um ícone da arte brasileira, além de ser uma pessoa do bem. – fui-lhe sincero.
-obrigada, pena que lhe conheci depois de velha, senão, teria sido sua amante. – brincou. Fiz-lhe gesto de assentimento. Ela continuou:
“... Casei-me com um colega de trabalho. O casamento foi feito na Catedral do Rio, com tudo que tínhamos sonhado: buffet, Kadillac, viagem ao exterior, a mídia cobrindo cada passo e cada palavra. Fomos para Barcelona, Roma, Paris e voltamos para casa. Sessenta dias atravessando fronteiras. Júlio Galhardo, meu marido, foi de um cavalheirismo indescritível. Ele parecia estar dentro de mim, do meu pensamento, adivinhava os meus mais recônditos desejos. Se no namoro ele tinha sido um amante perfeito, depois de casado, ele duplicou os carinhos e os cuidados. Foram sessenta dias inesquecíveis...
Quando retornamos, os assédios de emprego partiam de todos os lados. As principais empresas de comunicação do país queriam fechar contrato conosco. Nossa vida era próspera. Fizemos alguns investimentos em imóveis, títulos de capitalização do governo, um haras e um sítio no município de Campos, interior do Rio de Janeiro.
Não tivemos filhos. Dois anos depois, fiz um tratamento com um especialista em fertilidade humana, mas não vingou nenhuma gravidez. Júlio começou ficar arredio, taciturno, ciumento e deu pra beber. No início era uma cervejinha ou uma pinga na hora do almoço, com o passar dos dias, ele foi relaxando, chegando bêbado e atrasado nos estúdios de gravação, nos ensaios e algumas vezes, teve de ser substituído nas peças teatrais. Desempregado e cachaceiro, ele passou viver às minhas custas.
O nosso mundo ia ruindo, as cenas de ciúmes que Júlio fazia em público, foram decisivas para que os meus contratos não fossem renovados. As propostas contratuais não condiziam em termos salariais e profissionais. Além disso, já estava com mais de 35 anos de idade, os produtores, os diretores teatrais, de televisão e de rádio, lançavam novos brotos no mercado.
Júlio passou por vários manicômios. Tornou-se um alcoólatra e com o alcoolismo outras doenças vieram no bojo: estados psicóticos, depressão, convulsões, confusão mental, delirium tremus e por aí afora. Saía bem do hospital, mas pouco tempo depois, voltava beber e repetia-se tudo de novo. Levou essa vida quase oito anos, vindo falecer com 43 anos de idade.
Vendi o sítio, o haras e lancei mão de algumas economias que tinha na poupança. Cada internação de Júlio ia um bom dinheirinho. Se ele tivesse levado mais quatro o cinco anos para morrer, teria me deixado na miséria.
Com dificuldade, pude manter e comprar depois alguns imóveis. Hoje, tenho uma aposentadoria mínima e os aluguéis dos meus apartamentos completam a minha subsistência.
Quando ele morreu, eu já era uma balzaquiana, porém, não faltaram propostas de casamento e amigação. Não quis mais envolvimento emocional duradouro. Namorei muito, agora, cada qual no seu cada qual. Não me atraía mais juntar as escovas de dente. Viver a dois é saber administrar as diferenças e não me achava mais em condições de enfrentar um novo casamento.
A juventude e o sucesso são passageiros. Lembra-me uma parábola com a base do vértice voltado para cima. Se alguém escalasse um dos lados dessa parábola, o topo seria o sucesso auge, o estado aprazível, o nirvana e a descida, a decadência, que é irreversível, ninguém se mantém no topo eternamente, o problema consiste que desejamos a subida mas, nunca estamos preparados para descida, para o ostracismo.
Fiz papel de tia, de mãe, de avó e outros papéis de somenos importância. Quando eu senti que o trabalho artístico não tinha mais significado para mim que não me dava mais prazer fazê-lo, que o trabalho me era dado como para ajudar uma artista velha, eu sumi do meio e homiziei-me voluntariamente para este abrigo Espero que os meus ossos sejam enterrados nesta cidade.
Ela tinha falado um tempão, não a interrompi para não atrapalhar seu raciocínio, embora ela fosse de uma lucidez invejável para sua idade, ás vezes, ela tergiversava noutros fatos que não tinham nenhuma relação com o seu depoimento e voltava com a maior facilidade ao fio da meada. Por isso, fiz-lhe algumas perguntas antes que deixássemos o jardim:
-Por quê razão não deixou Júlio quando ele começou beber desregradamente? – provoquei.
- Você é jovem, desconhece naturalmente que os compromissos morais são mais fortes que o amor. Tínhamos jurado estar juntos na saúde ou na doença, na alegria ou na dor, na miséria ou na bonança. Como iria abandoná-lo na doença. O alcoólatra é um doente. Casamos por amor, ele não me era infiel, portanto, eu tinha obrigação moral de não deixá-lo à deriva. – justificou.
-Bem, eu pensei em seu bem estar, em sua carreira, todavia, você poderia ter dividido esse peso com seus colegas de trabalho. Afinal, não tem uma casa beneficente de ajuda aos artistas, algum hospital público, montepio, previdência pública? - tentei desculpar a minha insensibilidade.
-Nessa época, esses serviços gratuitos eram precários. Os colegas, a maioria é imprestável, cada um está preocupado com o seu próprio umbigo, ás vezes, o apoio e a ajuda chegam de pessoas que jamais se imaginou. Nunca pense dividir seus problemas com o outro, pois o outro é um problema. – sua lucidez era admirável.
-Angelina, observa-se que você passeou ao longo desses anos por várias escolas filosóficas!... – brinquei.
-Meu filho, estudei as primeiras letras com os meus pais, aprendi o suficiente na escola e me doutorei na universidade do mundo. Aprende-se muito com as experiências do dia-a-dia. A vida é um aprendizado e a sapiência chega com a velhice.
-Minha amiga, acho que o pessoal está preocupado com o nosso sumiço! Vamos entrar?...

V

Três anos depois. A minha amizade com Angelina se estreitava a cada dia. Tornei-me seu confidente escolhido. Quando tinha problema de saúde ou alguma dificuldade, era o primeiro a saber, elegeu-me seu porto seguro em detrimento dos seus parentes. Acredito que se devia ao fato da minha presença constante e a assistência que lhe dava.
Sentia-me honrado de sua amizade, mas não me sentia satisfeito sua cisma com seus parentes, embora tivesse consciência de não ter contribuído para essa animosidade sutil, intimamente, dava-lhe razão, pois eles, esporadicamente, iam visitá-la.
Natal de 2006, nós tínhamos programado participar da festa de confraternização que o abrigo São Francisco promove todos os anos com a presença de parentes dos internos, de amigos e funcionários da instituição. Uma festa alegre, com representação teatral, canto, dança e outras brincadeiras, com a prata de casa e alguns artistas convidados. Começava-se cedo, considerando que a maioria dos velhinhos, vai para cama assim que cai a noite.
Naquele dia achei Angelina fraquinha, sem muito interesse pelo que estava ocorrendo ao seu redor. Tive que lhe dar uma injeção de ânimo:
-Quê houve Angelina? Seus sobrinhos lá fora e você aqui esquentando a cama!... – brinquei.
-Beto, eu estou mole, sem desejo de nada, por mim ficaria o dia todo aqui estirada... – estava visivelmente deprimida, buli no seu ego:
-Quer que eu espalhe que a artista mais esperada está nessa chochice! – ela riu.
-Você não tem jeito. Levanta até defunto com seu bom astral, porém, não fique cheio de si, na sua idade, eu também fazia cobra cuspir, quando você descer a ladeira do ocaso, queria estar presente para testemunhar o velho chocho e sorumbático que você vai ficar!... – eu tinha conseguido animá-la.
A festa foi um sucesso. Um conjunto de forró da região tinha sido convidado e foi a coqueluche de todos. Angelina foi convidada para recitar um soneto de J.G. de Araújo Jorge. Houve canto, dança, humor, jogos de prendas, presentes e declarações sentimentais.
Fui pego de surpresa quando Angelina após ter declamado o soneto de J.G.de Araújo Jorge, fez uma confissão pública de amor materno por mim: “... os meus parentes de sangue me são caros mas, Alberto Silva Santos, o meu Beto, é o filho que não parir porém, é o filho que escolhi”. Não me envergonho dizer que as lágrimas me vieram aos olhos, não esperava dela uma confissão dessa natureza, ela não era dada às fáceis manifestações sentimentais.
Eu passava no abrigo todos os dias, à tarde, para vê-la quando saía do trabalho. Sua de decrepitude era vista a olhos nus. Naquela manhã de 10 de janeiro de 2007, o abrigo telefonou-me, urgia a minha presença, Angelina estava prostrada na cama com graves problemas respiratórios. Atendi de imediato o chamado do abrigo, juntos providenciamos sua internação hospitalar.
Fiquei o dia todo ao seu lado. Na madrugada do dia subseqüente, ela faleceu em meus braços.
Mandei colocar em sua tumba a inscrição:
“Jaz aqui uma mulher que não me deu à luz, mas ensinou-me a arte de viver.”



Autor: Rilvan Batista de Santana - ALITA
Gênero: Conto
e-mail:rilvan.santana@yahoo.com.br
 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 01/07/2012
Alterado em 03/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr