Textos


                                                                    "Nóia não, meu filho!"

                                                                      "Nóia não, meu filho!"
                                                                                R. Santana

                                                                                1


          A casa dela fica no sopé de uma encosta, em um bairro de pobre, de uma cidade grande (leitor não me peça o endereço, é uma história de ouvir-dizer), embora por fora a casa não tivesse um aspecto tão miserável, por dentro, as paredes de bloco estavam sem reboco, esburacadas, lugares ideais para Alexandro, o “Alex”, assim conhecido na roda da malandragem, esconder suas pedras de crack, papelotes, porções de cocaína e quando não abraçava jacaré numa balada de grã-finos, deslocava algumas pílulas de LSD. Foi também nesses buracos das paredes de sua baia que certa feita, os milicos flagraram essa bagulhada, para surpresa de sua mãe, numa batida inesperada.
          A faxineira Matilde, conhecida de algumas casas ricas, aos troncos e barrancos, conseguiu construir o seu casebre, não era escrava do aluguel... Bom papo, amiga da vizinhança, prestativa, nordestina da gema, nos finais de semana, pegava o busão e ia bater coxas nas casas de forró, onde conheceu e enrabichou-se pelo pernambucano Alexandro de Tonha.
          . Além de Alex, Matilde teve mais quatro filhos e, se não fosse a morte prematura de Alexandro de Tonha por um colega de bebedeira, teria o dobro da molecada, pois o negro não deixava sua perereca em paz, era um danado rufião!...



                                                                                2

          Naquela manhã foi grande o alvoroço na casa de Matilde, o pessoal do Conselho Tutelar, alguns policiais e alguns bisbilhoteiros da imprensa estavam lá, movidos por uma denúncia anônima.
O babado foi barra-pesada, os milicos e o pessoal do Conselho Tutelar flagraram o nóia do Alex preso ao cadeado por uma enorme corrente. Um alcagüete, um vizinho, algum boca-mole, havia denunciado Matilde por maus tratos e cárcere privado do seu filho Alexandro.
          Boca-aberta, incapaz de maldade, jamais pensou que por perto houvesse algum dedo-duro que se prestasse denunciar um ato de amor. Acorrentar o filho foi a contragosto, o seu peito doía, o seu coração de mãe sangrava, dilacerava, mas tinha sido do gosto e permissão de Alex, que lhe pedira como único recurso para não ser morto pelos traficantes e noiados na rua, dele dá um rolê, capar o gato...
          Condicionou à sua mãe, que o acorrentasse junto da casa de força, não queria ajuda de ninguém no momento de despejar o barro ou lançar mijo no vaso, exigências cumpridas e satisfeitas sem dificuldade, pela pequenez do casebre.
          Naquele dia, fotografada de todos os ângulos e posições, transformada num piscar de olhos, em bruxa, mãe desalmada e megera, por aquela gente de paletó e gravata, farda e coturno, vestido e salto alto, pedindo-lhe para explicar o inexplicável, citando-lhe leis e artigos, de muita monta e pouca utilidade, de muito saber e pouco resolver, muito xaveco e pouco dizer, Matilde teria mandado aqueles almofadinhas e aquelas mocréias queimarem a rosca noutro lugar, zoar noutra freguesia, mas o seu chegado Zé Buceta e as ameaças de prisão impediram que ela mandasse os vazarem dali...


                                                                                3

Dois meses depois:

          -E aí véi, tudo bem?
          -Tô a pampa! – respondeu-lhe Alex.
          -Tô a fim dum rolo, véi!...
          -Arranje um trampo, Joca!
          -Só de aviãozinho, mano!
          -Fulerage véi, os nóias queimaram o meu filme! – acrescentou:
          -Tô na seca mano, com vontade de puxar um beck!...
          -Eu tenho aqui uma muamba quer?
          -Fulerage, Alé!...
          -Mano quem está na seca...
          -Paraguai não, mano! Vou pegar um traveco daqui a pouco e queimar... – Alex bufou:
          -Bobó só de mulher véi, tem que rolar sentimento, tesão!...
          -Papo de elefante, mano! – Alex desconversou:
          -Estou bolando um trampo... barra-pesada, vinte e dois... vou precisar de gente sacudida!
          -Oie eu aqui mano! Sento o dedo numa boa... - Alex o interrrompe:
          -Si liga, Joca! Nada de presunto, use a cachola e não o dedo, véi!...
          -Tá lordaço, mano!!! – irritado.
          -Quer peitar os milicos, os gambés, miolo de pote!? – Joca corou.
          -Mano, eu não sou mané, fique na moral... – Alex amenizou:
          -Véi te considero, deixe de ser salsicha!– completou:
          -É money, muito money, muita grana e não couro de rato! – Joca se animou:
          -Agora, estou começando ter a moral, véi! É muito money?
          -Muito!
          -Pode crer, se avexe não Alé, estou aqui véi!...
          -Arranje dois guapos, não quero ninguém espichando as canelas!
          -Dividido por quatro, mano?
          -Já lhe disse que é muito dindin, fita forte, e o entrevero pode ser barra-pesada!
          -Deixe comigo Alé, conheço dois cascas-grossa de confiança. E as máquinas?
          -Não se avexe, mano! – Joca muda de assunto para agradar o companheiro:
          -Tem azarado a mina?
          -Puro suco, style mano!... – deu uma risada e advertiu-lhe:
          -Cinquenta nove, véi!
          -Não se avexe Alé, pode crer!...
          Alex e joca pegaram o beco, ficaram na moita uns três meses. Promessa feita, palavra cumprida, Joca conseguiu numa birosca conhecida, entre uma gel e uma birita, arrebanhar para Alex, dois chegados, mais que chegados, dois colados, eternos devedores de sua amizade e favores.
          Enquanto Alexandro matutava o seu plano, embrechava-se mais com a louraça Mary, não saía de sua casa, rolava sentimento, tesão e bem querer. Amizade de criança, prazer de adolescente e mais tarde... amor de adulto.
Mary, moça saitica, puro suco, enrabichou-se desde moleca por Alexandro, um ano mais nova, fazia dele gato e sapato, mais sapato do que gato, ia buscar-lhe em qualquer boca, destemida, até pouco tempo cabaço, jurara pra sua mãe e ia catiando para o seu bem querer, toda vez que ele ia com a mão leve:
          -Assim não dar nega!!! – retado.
          -Tá de chico...
          -Tirando onda comigo, nega!?
          -Bote fé!
          Alexandro armou para lhe tirar o cabaço, dar uma, ficar e enfiar... Esperou-lhe um vacilo, aproveitou um bate-coxa de sua velha num final de semana e a levou para sua baia, lá lhe encheu o bucho de caipirinha e mais cedo do que pensou e mais tarde que pode agüentar, a loira se abriu mais do que macaxeira-batata.
          Agora, sua nega estava estranha, arredia, parecendo facão, choramingando pelos cantos, de cachimbo apagado, não rolava mais sentimento, fubanga sem ser fubanga, mocréia ainda menina. Apagou-se o vulcão que lhe queimava as entranhas, não tinha mais fogo no rabo, desconfiada, exigia-lhe camisinha, não podia mais dizer “tá de chico” ; agora, Alexandro a conhecia pelo direito e pelo avesso:
          -Nega, ta me fazendo de mané?
          -Não paizinho, é que ando com uns sonhos...
          -Sonhos?
          -Sim!
          -Todo mundo sonha, nega!
          -Mas...
          -“Mas” o quê?
          -Paizinho espichando a canela...
          -Tá de miolo mole nega?... Tá dando uma de mãe Creuza?...
          -É que tô com medo ocê morrer, tô grávida! – Alexandro quase tem um treco...
          -Verdade, nega?
          -Verdade, verdadeira!...


                                                                                4

          O quarteirão fervilhava de policiais, suas viaturas fechavam todas as ruas ao redor, ninguém entrava, ninguém saía, lá, dentro do Banco do Povo – BP, três adultos e um moleque crescido, de revólveres em punho, deixavam em pânico, em polvorosa, os clientes, os jovens, os menos jovens e os idosos, enquanto a polícia de megafone apelava e advertia-lhes para o perigo que eles e os reféns estavam expostos, não admitiam negociar, não atenderiam de forma alguma às suas exigências, que a saída, o bom senso, seria, eles libertarem os reféns e renderem-se à prisão:
          -Rapazes soltem os reféns e entreguem-se, os seus direitos lhes serão assegurados!!!
          -É lero-lero, atendam aos nossos pedidos!!!
          O desgaste era visível, há mais de três horas, eles estavam nessa demanda: a polícia não cedia e os bandidos não transigiam e os reféns de medo morrendo...
          As mães dos bandidos foram chamadas, a polícia usou os apelos da mãe do bandido mais novo, pois parecia o mais recalcitrante e que mantinha o controle dos demais:
          -Filho, se entregue! Sua mulher tá grávida, você vai ser pai!...
          Este último apelo mexeu com o adolescente: “você vai ser pai!...” entrou como uma lâmina afiada no seu peito. Dezesseis anos incompletos e pai, não sonhou aquilo, não sonhou ser bandido, sonhou ser doutor ou jogador, sonhou sair daquela vida de miséria, deixou a vida lhe levar, quase não teve pai, toda vida teve mãe-pai, velha guerreira, sua heroína, heroína sem placa, anônima, mas de muita história e lição de vida, escrava e mãe de escravos ainda não alforriados duzentos anos depois, pelos mais afortunados: “merda!...” – pensou.
          Novo burburinho, alguma coisa iria acontecer e aconteceu: um rapazola empunhando um 38, escondido atrás de uma jovem, rendia-se, ia entregar-se, dessem-lhe segurança, tudo estava perdido:
          -Paz!!!
          Porém, o seu apelo não levou um minuto, alguém escondido não se sabe onde, deu um tiro de fuzil e acertou o coração da jovem escudeira, simultaneamente, o jovem bandido atirou na testa do homem do megafone, caindo em seguida, crivado de balas!...

                                                                                     5
          Duas mulheres se descabelavam em cima do corpo do jovem Alexandro Crispiniano Filho, quando um velho policial tentou confortá-las:
          -Senhoras, menos um nóia, menos um criminoso na sociedade... – Matilde o interrompeu:
          -Nóia não, meu filho!!! – as lágrimas caiam copiosamente dos seus rostos...

Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: conto.
 

P.S:
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (você deve citar a autoria de Rilvan Batista de Santana).Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 02/06/2012
Alterado em 25/03/2023


Comentários


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr