Textos


O aborto - R. Santana

          À uma hora, daquela Segunda-feira, Mariana, esborrachada na cama, não despregava os olhos do teto do seu apartamento. Não conseguira pregar os olhos, o sono lhe tinha fugido, há seis meses tinha feito um aborto, seis meses de noites mal-dormidas e não dormidas. Os remédios lhe aliviavam a tensão, a angústia, o mal-estar, as dores de cabeça, os remédios lhe davam um arremedo de sono, um sono conturbado, um pesadelo, mas os remédios não lhe davam sono, os remédios não lhe curavam, os remédios não curavam sua dor...
          Mariana lembrava-se como tudo começou: desiludida de Victor por arrastar-lhe a um noivado que não tinha fim, jogou-se nos braços de Guto, o melhor amigo do seu noivo e engravidou. Não sabia se engravidara de Vítor ou de Guto, poderia colocar o rebento nos braços do noivo, mas poderia ser traída pela natureza assim como foi traída Capitu quando foi infiel ao seu marido Bentinho com Escobar e nasce Ezequiel semelhante ao amante para seu desespero e martírio longe da pátria.
          Às 2 horas, daquela Segunda-feira, o calor tomava conta do seu quarto, Mariana respingava de suor, não obstante o ventilador ligado, a cabeça latejava-lhe, num impulso levanta-se da cama, veste uma roupa leve, olha pela vidraça da janela, a cidade está vazia, as ruas estão bem iluminadas, vê de quando em quando algum notívago passar sem rumo e sem pressa (morador de rua ou boêmio), cansada daquela imagem soturna, pega o elevador e desce...
          Às 3 horas, daquela Segunda-feira, Mariana cansada de perambular a esmo pelas ruas da cidade volta para o apartamento. Saiu muda e voltou calada, no saguão esbarrou com um dos porteiros que a cumprimentou, ela grunhiu como resposta, um gesto que não passaria despercebido pelo mais desleixado dos servidores do prédio, pois era dada com todos, do zelador ao mais ilustre morador, era persona grata em todos 64 apartamentos, arroz-de-festa, conhecia cada família com se sua fosse.
          Sua cabeça não mais latejava, tomou algumas providências necessárias antes de se jogar na cama: abriu as janelas, desceu as venezianas, colocou um colchonete na sala e duplicou os barbitúricos!... Às 4 horas, daquela Segunda-feira, Mariana dorme o sono dos justos.
          Doutor Marcos não era santo nem satanás, restava-lhe alguns pruridos morais e éticos ao longo de 28 anos de boa obstetrícia, porém a necessidade de manter os filhos em faculdades de elite, há uns 8 anos, vinha driblando a Lei. Agora, com os filhos formados e bem encaminhados na profissão e no bolso, não havia necessidade dele continuar na má obstetrícia, mas como o hábito é uma segunda natureza, continuava praticando-a naqueles casos que a Lei o amparava, porém, o cesteiro de um cesto é o mesmo de cem, também a praticava naqueles casos em que a cliente possuía uma conta bancária irresistível.
          Explicou-lhe os riscos e os procedimentos de um aborto na primeira consulta, deu-lhe um tempo para pensar... Mariana resistiu ao apoio psicológico indicado pelo médico, não ia voltar atrás, “alea jacta est”, se César confiou na sorte, “eu não”? Por isto, marcaram dia e hora para expulsão daquele corpo indesejável!...
          Às 5 horas, daquela Segunda-feira, Mariana estirada no colchonete de sutiã e calcinha, mexia-se e choramingava baixinho, depois, num diálogo estranho, quase aos gritos, movida por uma força invisível, em transe, ela alternava vozes de adulto e criança com flashes de imagem:
          -Olhe o seu filho!!!
          -Esses pedaços de carne?!
          -Você o quis assim!!! – berrava o médico.
          -Não, não, é sua mentira – completava:
          -O senhor disse que no meu útero não havia gente, mas um amontoado de células!... – o “filho” com doçura:
       -Mãezinha, peça-lhe para devolver os meus pezinhos, as minhas perninhas, os meus braços, o meu corpo... – Mariana descontrolou-se:
          -Devolva o meu filho doutor!!!
          -Eu sou Deus? Você o transformou “nisso” quando tomou aquele remédio, ele teve que sair aos pedaços!
          -Miserável!... – caiu em prantos. O “monstrinho”, girando a cabeça sinistra, grita:
          -Assassinos!!! – voltando-se para mãe:
          -O manto da treva cubra sua alma para sempre!... – voltando-se para o médico:
          -Certamente, tua alma queimará no fogo do inferno, mil anos sejam-lhe dados para cada vida que tu tiraste!...
          Mariana acordou encharcada de suor, a cabeça lhe latejava, alucinada, rogava perdão ao Criador, incontinenti se joga do 4º. Andar, seu corpo cai sem vida no playground...
          Que o seu sangue lhe lave os pecados e Deus lhe dê a vida eterna!...

Autor: Rilvan Batista de Santana
Gênero: conto (registrado)





















 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 28/05/2012
Alterado em 24/02/2023


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr