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O fantasma

O Fantasma
R. Santana



O meu amigo Pedro é pior do que S. Tomé. São Tomé duvidou, mas creu na ressurreição quando encontrou Cristo Ele mesmo vendo ainda usa empecilho e dúvida. Não é uma dúvida cartesiana, racional e inteligente. Ele é um niilista sem ser niilista. O niilista nega a verdade absoluta, mas propõe um novo modelo social a partir do zero. Pedro é mais um chato que não acredita porque não quer acreditar, duvida pelo prazer da duvidar.
-Pedro, saímos de Vitória da Conquista com quatro carretas carregadas de café com destino ao Porto de Ilhéus, ao invés de passarmos por Itabuna e pegar a BR-415, pernoitamos em Uruçuca por motivos particulares e o dia ainda escuro, puxamos os carros.
-Se vocês quatro viajavam juntos como só você viu o fantasma?
-Pedro, não se viaja um colado no outro, há um intervalo de tempo de cinco ou mais minutos. Assim que a garota me levou até o carro virado quase embaixo da ponte, voltei para pedir socorro e já encontrava os meus companheiros parados no acostamento, preocupados comigo.
-Sua história estar parecendo de pescador, compra o peixe para arrotar eficiência de pescador. Vocês usam tantos artifícios de segurança, iriam se render aos apelos de uma garotinha, na bruma da madrugada, na beira do asfalto, que poderia ser uma isca? Vai pra lá...
-Não estou lhe pedindo para acreditar. Você que me pediu pela enésima vez para repetir essa história.
-Eu gosto tanto de ouvir suas histórias de caminhoneiro que mesmo não acreditando nelas, espairece-me a alma.
-Pedro se você não fosse meu amigo, eu iria mandar você...

Mudamos de assunto, senão, iria aborrecer-me com o meu amigo Pedro, ele é polêmico, mas aprendi que numa amizade contam mais os defeitos do que as qualidades. Quem não sabe conviver com os defeitos não alcança as qualidades. Ele é ranzinza, enjoado, mas, não conheço pessoa mais prestativa e solidária do que Pedro. Tem um coração que não pode ver alguém sofrer, é capaz de vender a mulher e empenhar os filhos se isto fosse possível para atender às necessidades de um amigo.
A história que lhe contei foi verdadeira, não foi um conto da carochinha. Sei que é difícil acreditar em visagem, assombração, alma penada, fantasma, enfim, cousas do outro mundo, entretanto, existe uma contradição na negação porque quando se nega a existência de um ser, é que o não-ser existe.
Peço que o amigo leitor tenha paciência que irei repetir a história que comecei contar para Pedro.
Pernoitamos em Uruçuca. Tínhamos condições de dormir em Ilhéus. Era cedo quando chegamos à Uruçuca, naquela última quinta-feira, à tarde, do mês de maio de 2004. Porém, um dos colegas tinha residência e família ali; outro uma xodó de priscas eras. Eu e o colega mais novo não tínhamos mulher nem xodó, mas estávamos doidos pra cair na gandaia, tomar umas cervejas e depois dormir enroscado com alguma andorinha da terra.
Acordamos às quatro da madrugada. Tomamos um café, fumamos, fizemos uma vistoria nos carros e partimos. Por ser o mais velho e o mais experiente, o meu carro ia na frente. Juliano, o motorista mais novo e mais moleque, costumava falar:
-Deixe o coroa ir na frente, experiência é posto! - Não gostava de puxar os demais carros, pois teria que ser o mais rápido e o primeiro a enfrentar o perigo. Embora a brincadeira de Juliano fosse de mau gosto, gozando dos meus anos de estrada e de idade, a expressão “experiência é posto”, dava-me fumos de autoridade no volante e enchia o meu ego, já que estava prestes à aposentadoria.
Acredito que viajamos menos de 25 quilômetros. Longe ainda, avistei uma garota loira, os cabelos compridos e escorridos nas costas, pedindo pra parar. Pensei acelerar o carro e passar distante, poderia ser uma isca, nos assaltos, era comum o uso de mulheres e menores para atrair o incauto motorista ou o motorista de bom coração. Porém, fui refreado por uma força estranha e impedido de continuar, parei poucos metros distantes da garotinha.
-Senhor, salve meus pais e meu irmão!!!... Venha, eles estão lá embaixo dentro do carro. – Não pensei uma fração de segundo (não sei se os astrônomos têm um instrumento eletrônico capaz de medir um tempo tão infinitesimal), peguei a garota pela mão e descei a ribanceira para acudir os pais dela e seu irmão.
Era um quadro dantesco sem ser o quadro de Dante Alighieri que só tinha fogo. Um carro da Fiat, quatro portas, tinha arrastado matos e pedras na descida desgovernada


de uma ribanceira e virado uma ou duas vezes e quase caído dentro do rio que cortava a rodovia. O motorista estava desmaiado, debruçado sobre o volante, um menino chorando e uma mulher gemendo e sangrando presa ao sinto de segurança. Voltei-me para garota:
- Espere-me aqui um minuto, vou pedir ajuda aos colegas que estão chegando!
Quando retornei, os meus colegas já tinham estacionado à traseira da minha carreta. Gritei para todos:
- Correm, tem um carro lá embaixo com uma família dentro. – Tem alguma vítima grave? – perguntou Juliano – Não sei, vamos lá! – intimei-os.
Todos desceram rapidamente. Janjão tirou logo o menino que estava com um choro traumatizado. Juliano e Zezéu foram em socorro da mulher, enquanto eu procurava com dificuldade abrir a porta do motorista para lhe prestar ajuda que coadjuvado por Juliano, conseguimos retirar o motorista do carro. Era um homem enorme, que começou gemer à medida que o tirávamos do automóvel.
Além de Janjão ter ido buscar água no seu carro para o menino, telefonou para polícia de Uruçuca solicitando-lhe providências e organizou uma operação de socorro com os carros que iam rumo a Ilhéus, 20 minutos depois, os socorros chegavam em abundância: desde remédios até padiolas improvisadas.
Naquele momento, pensei que todas providências já tivessem sido tomadas quando Zezéu me chama:
- Roberto vem cá!- Tinha subido para o asfalto para agilizar o transporte do pessoal ferido, pois a mulher gritava de dor e pedindo-nos para cuidar dos seus filhos e o seu marido não ficava por menos. Acho que fisicamente, ele estava sofrendo mais.
- Diga Zezéu!...
- Vem cá. Temos mais um problema! – Quando cheguei, Zezéu puxava com cuidado, do banco traseiro, uma pessoa. Ainda não dava para ver o rosto e a idade. Percebi que era mulher porque estava usando vestido. Quando me aproximei, Zezéu completou:
-Roberto não quis lhe dizer daqui para que os pais dela não ouvissem. Mas, esta garota (apontou) está morta! – Estava menos de dois metros de Zezéu, quando num pulo me aproximei do corpo e gritei:

- Não, não é possível!!!... – Zezéu ficou absorto, não tinha entendido a minha reação. Pensou que eu estivesse preocupado com a reação dos pais da pobre garota.
Ninguém ia compreender e acreditar em mim, a garota que estava ali estirada era a mesma que tinha me pedido socorro. Quando Janjão pegou a criança, na agonia, não percebeu que ela estava caída entre o banco de passageiros e as poltronas da frente ou ela não estava lá? Ele jura até hoje, que vira somente o menino que choramingava um choro sofrido. Maior foi o mistério: é que no alvoroço e na balbúrdia, todos querendo ajudar só vir lembrar-me dela quando a encontrei nos braços de Zezéu.
Hoje, quando me lembro de tudo que ocorreu naquele acidente, fico assustado, com os cabelos eriçados, pois tenho certeza que foi aquela menina que salvou a família depois de morta. As pessoas não acreditam, mas foi ela que me fez parar o carro e levou-me até o local do sinistro, com seu rostinho angelical e sua voz delicada e dizer-me:
- Senhor, salve meus pais e meu irmão!!!...




Rilvan Batista de Santana, nascido em Lagarto (SE), licenciado em filosofia/matemática, pós em psicopedagogia, ex-ditetor do Colégio Estadual de Itabuna (BA), autor de 10 livros de ficção, 08 inéditos, 02 editados pela Editora t+oito (RJ), ano 2007, participação nas coletâneas














 
Rilvan Santana
Enviado por Rilvan Santana em 28/05/2012
Alterado em 03/08/2012


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr